O ENREDO DE UMA GUERREIRA
As
pétalas espalhadas sobre a toalha xadrez, denunciam muitos dias de
abandono e esquecimento. Rosas murchas jaziam no vaso. Sobre a mesa
um envelope empoeirado, endereçado esperava ser aberto. “Para
Arlete com carinho”... Um porta retratos na mesa, Arlete e Sérgio
juntos em vários momentos, um porta retratos pode reviver o passado
alimentando lembranças para quem olha.
Arlete,
mulher operária, trabalhava numa grande confecção de roupas,
costureira, lutava na conquista de uma vida melhor, não tinha tempo
ruim...Assim ela expressava-se, para os amigos, familiares, não
tinha tempo ruim....Sua existência de suor e trabalho desde a
infância, a calejou, aprendeu a enfrentar os dissabores, não era
pessoa de desistir na primeira pancada.
Viveu
sempre na periferia, seus pais compraram a prestações um lote e
construíram uma casa simples pequena, o bairro estava começando a
se formar, ruas de terra batida, sem água, esgoto, precária
iluminação publica. A primeira providencia dos moradores era
furar um poço e uma fossa para o esgoto doméstico.
Foram
anos de grandes dificuldades, o desemprego batia a porta por vezes,
faltava o feijão na panela, sua mãe arrumava uns bicos de
doméstica, o pai, seu Dirceu fazia de tudo, alvenaria, encanamento,
Marquinhos e Arlete faziam carreto na feira por uns trocados,
ganharam a simpatia dos feirantes e sempre tinham alguma coisa para
levar para casa. Arlete e os irmãos cresceram ajudando os pais em
todos os momentos. Dona Izildinha sabia que a salvação para os
filhos era o estudo dos meninos, fazia de tudo para que frequentassem
o grupo escolar. A escola publica fora uma cocheira de cavalos, todo
o bairro fora propriedade da família Bonfiglioli, logo pela manhã
os três irmãos iam para o grupo escolar. Arlete a mais velha, Dulce
e Marquinhos o caçula de uniformes azul e branco.
Seu
Millani o diretor ficava posicionado na entrada da escola,
observando severamente se todos estavam de uniformes e limpos. Em
fila dupla cada aluno entrava com sua professora na sala de aula. O
silencio reinava absoluto. As primeiras lições de aritmética,
português, novas dificuldades para superar. Perto da secretaria
havia uma casa de marimbondos, era o grande desafio para os meninos
acertar o alvo com uma pedrada.
Sempre
havia um engraçadinho de boa mira que acertava os bichos. Era
alvoroço geral, gritaria, confusão, corre de lá corre de cá...Dona
Sofia a faxineira, clamava proteção aos céus! Quando finalmente
os marimbondos acalmavam-se, lá vinha o diretor, vermelho como
pimentão soltando faíscas intimidando aos berros a todos, querendo
saber do “engraçadinho” que atingira a caixa de marimbondos com
pedras.
O
bom mesmo era quando chovia muito, as goteiras enormes paralisavam as
aulas, a meninada ficava incontrolável, todos eram dispensados... A
maioria saia em disparada fazendo grande algazarra, debaixo de
chuva, escorregando na lama...
Dom
Pedro I, o segundo, Tiradentes, era difícil ir ao dentista, o pai
ganhava pouco, depois abriram um consultório popular no largo de
Osasco. Princesa Isabel libertando os escravos, mas como o pobre vive
a sofrer ! Cabral descobrindo o Brasil, por que não deixaram os
índios sossegados ! A menina Arlete, era esperta, cuidava da casa,
dos irmãos, era valente brigava sem medo, protegia os irmãos dos
valentões, gostava mesmo de soltar pipa, jogava futebol, torcia
para o Santos, pegava caixa de fósforos vazia para apanhar
vaga-lumes e soltar no escuro, e dizer que eram estrelas, o pai dava
risada, homem que amava os filhos. Dona Izildinha, mulher valente,
tirava quebranto, sempre amorosa e protetora, surpreendia-se com
Arlete, gostava da vivacidade da filha.
A
infância foi difícil, mas com esforço tudo foi sendo superado, o
fato de maior dor foi quando Dulce que sempre teve saúde frágil
adoeceu com amidalite grave, o pai saiu correndo no meio da noite com
a menina nos braços ardendo em febre, os vizinhos socorreram, seu
Pedrinho era o único que possuía carro, uma kombi, levou o pai,
Dulce com convulsões, para o pronto-socorro no centro da cidade. Foi
medicada, mas a menina era alérgica ao antibiótico, ninguém sabia
e aconteceu o choque anafilático, o quadro agravou-se, correram com
a menina para a emergência, mas aconteceu o pior, o óbito. O dia
amanheceu, nada do pai e Dulce. Horas depois ele chega com os olhos
vermelhos de choro e diz que a pequena Dulce não voltaria para casa,
foi morar no céu com os anjinhos. Arlete chorou muito, ficou dias
sem ir a escola, parecia que os dias eram feitos de sofrimento e
saudade.
Os
anos seguiram, o bairro, a cidade, a vida de Arlete foi modificando.
As duras penas conseguiram melhorar a casa e até ampliar. Marquinhos
já era rapaz, trabalhava com o pai, eram feirantes, Arlete aprendera
a profissão de costureira, trabalhava na lapa, saia de casa cedinho,
trabalhava muito, preocupava-se com o bem estar da família, fez de
tudo para que Marquinhos continuasse os estudos, mas o rapaz era um
cabeça dura preferiu trabalhar com o pai, Arlete era apaixonada pela
dança, sua diversão na vida era o samba. A única coisa que não
podia deixar de fazer na vida era desfilar, nos dias de carnaval
dormia na casa das amigas da fábrica e juntas iam para os ensaios na
Barra Funda, até o dia do desfile no sambódromo. Dona Izildinha
não dormia, ficava de olhos bem abertos para ver a Camisa Verde e a
Arlete desfilar, cheia de requebros, fantasiada e feliz na
passarela. Mas dessa vez, antes de começar o desfile da Camisa
Verde, dona Izildinha teve um pressentimento ruim, uma coisa fria nas
costas, então veio a figura de Arlete no pensamento, ficou
apreensiva por momentos, foi para o quarto orar pedir a luz divina
que protegesse a filha, entrou em pânico ao ver a imagem de São
Jorge quebrada na penteadeira...
Foi
no samba que conheceu Sérgio, saia na bateria, era motorista de
caminhão, estavam juntos há três anos, Sérgio era alegre,
cresceu dentro da quadra da escola, conheceram-se nos ensaios. As
vezes aconteciam brigas de ciumes, principalmente quando Renatinho,
o pandeiro de ouro, com insistência insinuava-se pra cima da Arlete,
era um conquistador barato, cheio de conversa até a vítima cair na
sua lábia, e depois saia fora da garota, já tinha filho, mas não
assumia a paternidade, não aceitava a rejeição de Arlete.
De
repente o fulano sumiu, dizem que entrou em cana, envolveu-se com
um pessoal barra pesada. Arlete tornara-se uma mulher bonita,
atraente e era impossível algum homem deixar de olhar para seu corpo
escultural. A emoção era contagiante, o ritmo da bateria, as cores
e o brilho das alas, as fantasias, o povo na arquibancada cantando
junto com a escola. Arlete transformava-se parecia uma grande dama
irradiando alegria.
Nessa
noite tudo iria mudar. A alegria iria ceder lugar para a tristeza.
A semana que antecedeu o carnaval foi conturbada entre Arlete e
Sérgio, irritadiços, ansiosos com o desfile, Sérgio não queria
que ela fosse para a casa da amiga, mas ela bateu o pé e pronto, o
ciumes aflorou entre eles. Qualquer olhar para cima da Arlete já
começava o zum zumzum...
Quando
a escola entrava na passarela tudo era mágico, as mágoas,
tristezas do ano que passou pareciam desaparecer , seu pensamento,
seu corpo tornavam-se uma coisa só, no ritmo fabuloso do samba.
De
repente aparece do nada o Renatinho com seu pandeiro começou a fazer
a corte para Arlete, no inicio parecia uma coisa natural do desfile,
só que começou a ficar inconveniente o assedio do rapaz, ela deu um
chega pra lá, mas nada, ele voltava a importunar, agora dizendo
palavras de baixo calão. Começou a confusão, Arlete foi pra cima
do traste, arremeteu-lhe violento tapa no rosto, dali a pouco
aparece Sérgio nervoso, alguém já o avisara da inoportuna presença
e logo a pancadaria começou, apareceu a turma do deixa-disso e o
desfile seguiu.
Depois
que a escola cruzou a linha de chegada, todos comemoravam o desfile
radiante, Sérgio encontra-se com Arlete e enquanto comemoravam aos
beijos, Surge Renatinho como um fantasma, com o rosto inchado,
sangrando a boca, tira rapidamente um trinta e oito da cintura e
dispara a queima roupa em direção aos dois, sai em disparada no
meio da confusão.
Os
dois caíram no asfalto abraçados e ali ficaram não foi possível
fazer nada, gritos e correria, tristeza no fim do desfile. Os dois
chegaram em óbito, nas Clínicas.
25/03/2011