DEZEMBRO DE SOL
Minutos
que vão sendo colados, compondo imagens na tela da lembrança,
silencio quebrado, musica que volta, dormia em alguma gaveta do
passado. Música e textura de formas e cores, olho para a varanda
plena de luz e vento.
Os
passos ainda são lentos com apoio de uma bengala metálica com
tripés, artroplastia total de quadril, novo desafio que precisei
enfrentar, depois de terríveis dores, agora tudo ficou guardado no
arquivo da memória. As dores estão em paginas viradas, a lembrança
imóvel da insônia que me acompanhava nas madrugadas no quarto do
hospital.
Deixo
o sol bater no rosto como o melhor presente para a pele sentir,
toda a luminosidade solar, provoca uma grande satisfação, os
minutos passam e apenas observo da varanda o limite azul do horizonte
com a música na mente, as palavras incompletas por escrever. Sons
urbanos, ventania, invadindo a sala, Dezembro trazendo o verão,
sempre a motivação de perpetuar o germinar da criação, imagens
que vão sendo construídas, sem ordem, lentamente composição de
palavras e imagem consolida-se na tela da memória. Lembro como
devorava os livros de Clarice Lispector, sempre os lia como poesia, e
bebia as palavras com grande avidez despindo todas as arestas que
Clarice construía, sutil engenharia fazendo com que sentisse
plenitude ao ler. Cenas e sensações, toda a emoção de estar
devorando o tempo presente e tecendo o instante seguinte.
O
dia vai sendo bordado na pele, agora os pelos da barba crescem
brancos, a surpresa do cotidiano sempre nos comove, enfurece, ou
e´indiferente redemoinho de sensações que vão querendo levar a
lucidez.
Os
fatos cotidianos quase todos são banais ou surpreendentes, o mosaico
das horas vai dando a tonalidade, embora tudo seja novo a cada
instante que passa. Vivemos e envelheço, o mundo e suas percepções,
na pele, na língua, na luz que penetra meu olhar. Assim essa
aventura de estar vivo consome as células e escrevo essa viagem
desconhecida que a cada dia vai consumindo cada homem ou mulher que
anda pelas ruas, pelas cidades do planeta. O planeta e´revestido
de uma única pele, sem muros, sem escadas, sem fronteiras,
apresenta-se sempre nu....
Dezembro
quente, despe a cidade de suas cascas, os bairros reverberam ritmo
alucinante, sentimentos diversos estão tatuados nas pessoas
apressadas que andam de lá para cá, movimento marcial, rápido, sem
tempo para esperar, com pressa de ir, expressão de incertezas fica
boiando no ar. A cidade consumindo a solidão das pessoas, de maneira
sutil como invisível vampiro.
O
olhar e o pensamento percorrem as ruas do passado, então revejo
ruas, avenidas que fazem parte da minha história, emoções diversas
misturam-se com sons e luzes, a tarde abafada dilui qualquer
pretensão para revolver meu deserto.
As
palavras, as cores, tramitam pelos meus dedos, mas escorregam como
agua e apenas sobrevivo inquieto, as luzes da tarde salvam minha
identidade ! Quantas frases e versos escreverei ? Quantas vezes a
busca por formas ou palavras irá consumir minha lucidez ?
Dezembro
de calor e luz ilumina as arestas possíveis, as tantas palavras que
surgem no pensamento,as imagens e minha história ! Tocar o
impossível, manufaturar com as mãos a alegria de viver, de
materializar o amar em imperecível flor ! Sina cicatrizada na alma,
e sempre sonhar com os dezembros de sol....
Por
um fio, as palavras quase fogem e completam a anarquia do meu sentir
o mundo, recortadas imagens, embaralhadas palavras e minha emoção
escoando na chuva, chuva pesada cai impiedosa lá fora, busco
recobrar equilíbrio, mas a sensação divertida de perder as
palavras que gostaria de escrever e escrever outras sem quase pensar
reduz a nada a ideia de estar inspirado ou motivado a escrever um
tema. Apenas o signo nascendo e viver seu significado de acordo com
meu desejo.
Grossa
chuva cai anunciado o verão voraz em afogar os pecados da cidade,
meu olhar busca alguma cumplicidade com os livros da estante,
iniciativa sem sucesso, os livros apenas são objetos possíveis de
incendiar a solidão das horas se assim quisermos.
A
música da chuva em ritmo único atravessa as horas enquanto a cidade
sofre as consequências do excesso de asfalto, cimento, concreto,
arquitetura sem harmonia, alagamentos e desolação na periferia.
Ritual de indiferença institucional, subproduto da diferença de
classes.
Escrevo
e salvo-me, busco em cada signo abrir infinitas janelas e percorrer o
que não tem tradução, apenas respira comigo. Janelas, portas,
barreiras impostas limitando o corpo finito, livre o pensamento vence
os limites e atravessa a noite chuvosa, provando as gotas da chuva
saciando a fome de existir e criar quantos universos possíveis
podendo superar a tridimensionalidade e tocar o improvável o que
ainda não podemos supor. Experimentar a ambrosia dos deuses !
Calendário
mudando consumindo nossas celulas, a história registra a tragédia
humana na superfície do planeta, e assim iremos beijar os lábios
do caos. Iremos destruir séculos de evolução ? O compasso da
chuva e´constante, a sedução pela cor pela palavra consome o
edifício dos anos. A criação consome, desgasta, pouco importa para
o leitor, o expectador , o que importa e´a frágil sensação de
chegar em algum porto seguro.
Necessidade
de traduzir a nós mesmos sem entender o significado e sempre sentir
os limites a incomodar a pele. Incomodado, inquieto, desfaço a
ferrugem cotidiana e traço um esboço, depois, realizo como linhas
definidas e cores emocionadas a construção do momento que vibra
na folha de papel, na tela, antes deserta e nua.
A
cidade não dorme, sua vida noturna vibra na carne dos solitários,
dos amantes que sedentos encontram-se, continente de ébano abrindo
sem chaves a nudez de nossas vidas. O pulsar da vida faz-se silente,
liberando as ancoras e assim corremos todos os riscos e perigos de
fragmentar nossa comoção e rebeldia.
Noite
de chuva, cidade chora seus pecados, suas misérias, avenidas,
alamedas, ruas, toda a geometria urbana afogada pelos córregos,
minha palavra, promovendo tradução incessante do existir sempre
expõe meu próprio espanto.
Ciclo
independente renasce a todo instante, universo que morre e nasce
dentro de mim, extrapola o corpo , a geografia, o sistema solar,
somos um corpo único, somos em Deus , somos o anti-Deus, que auto
devora-se em ato amoroso e assim a vida perpetua-se sem necessidade
de calendário ou registro, por si, metamorfose ambulante da vida,
os compêndios filosóficos existem para amarelar, e serem esquecidos
. A vida por ela e para o infinito, somos agrupamentos de átomos de
carbono em reações químico-físicas a multiplicar a especie na
superfície do planeta, animais “organizados “ em sociedade
lutando pelo poder até chegar a grandes conflitos bélicos entre
nações, somos perigosamente amantes do caos.
As
gotas da chuva batem com força na janela, fico lendo as palavras no
pensamento antes de digitar, antes de formar imagens junto com a
palavra, fecho os olhos, penso em músicas, escolho uma como tema e
misturo com o barulho da chuva e tudo fica em harmonia por alguns
instantes. A musica me faz sentir mutante, faminto por novas frases,
tudo devora tudo e então renasço ao sentir a madrugada chegando com
os primeiros fios de luz sobre os edifícios molhados.
A
cidade retoma o ritual cotidiano, a pressa matinal, os minutos
observados, as principais avenidas congestionadas e o gosto de café
ainda domina o paladar. O rádio ligado em outro apartamento me
lembra que o planeta esta incluso dentro das minhas entranhas,
compartilho a angustia, a solidão, a dor, a alegria, o ódio, a
rebeldia, sou identidade numérica, sou todos os livros lidos, os
poemas escritos, as cores que pintei, as noticias que escuto, a
família, a história que vivi... Releitura constante movendo as
emoções, modelando um mosaico instável.
Multiplico
o alfabeto e o pensamento faz veloz travessia no passado e assim
consigo rever velhas amizades, momentos preciosos compondo minha
história. Verbo reluzente que motiva o passo seguinte, insisto em
vencer os limites, tenho em mim todas as cores, tenho em mim o amor
que multiplica a vida, tendo as sementes do sol no esqueleto.
Compartilho
do pó das estrelas, sou com o planeta, raiz e seiva, o delírio
alaranjado dos hibiscos provocam grande alegria apesar de ser menor
que um grão de areia numa escala cósmica.
Quero
o sol queimando musgos da angustia, andar colecionando fotografias do
cotidiano e saudar cada dia vivido, incrível aventura da vida
renascendo a cada dia independente do nosso querer, das amarguras que
precisamos enfrentar e ultrapassar. Quero sol queimando as páginas
de dor, as marcas da solidão pichadas nos muros da cidade...
Subversão
oculta que sempre caminha ao meu lado, quero o sol na minha face, e
dividir o sonho de um país sem o horror da miséria, da corrupção
sórdida dos eleitos pelo povo, quero o sol queimando todos os
pesadelos, e intensamente viver os dias na cidade.
Olhar
a realidade e reconhecer o limite da minha identidade, então recorro
aos traços, as palavras, cenários e personagens, mosaico vivo
consumindo a existência. No espelho me vejo envelhecer, mas a
vital subversão permanece respirando nua, sensual, saciando meus
desejos...
Busca
que não cessa, o impulso de criar e não entender o porque, criar e
sentir-se satisfeito, depois recomeçar tudo novamente, deserto que
devora qualquer fio d'água, as horas, os dias, as semanas, o
movimento das ruas, da cidade, vida e morte irmanadas tatuando nossas
vidas e olhar para dentro de nós e olhar para os olhos do próximo e
aprender que somos uma mesma diversidade, ilhados em nós mesmos
construímos e destruímos, eros e thanatos, na mesma máscara. Então
colorimos a realidade material, nossos corpos em cópula, silenciosa
alquimia do existir, estimulados pelos hormônios, a nossa presença
material perpetuada na superfície do planeta . Afinal somos
proprietários de nossos corpos ?
Ferramenta
e posse, corpo e agir, ferramentas desde a pré-história para matar,
para comer, sobreviver, criar a civilização, Deus nos joga em
labirintos para superar os limites, paredes que nós mesmos
erguemos, e Deus nos assiste sem interferir em nossos descaminhos...
Chuva
lavando nossa dualidade, palavras perdidas fugindo para os bueiros,
então por que recriamos o amor ? Instinto da preservação da
espécie ? Ruas que atravessam meu corpo, ruas que deixam fotografias
anônimas coladas na pele, comoção por estar vivo sem levar dogmas
debaixo do braço.
Dezembro
abafado enchendo a sala de comoção, resolvo sair, e esquecer
aqueles sentimentos difusos, minha marcha e´ lenta, mas isso perde a
importância tudo parece , reviver por que estou reaprendendo a
andar, com a ajuda de andador e bengala, depois de meses
impossibilitado de levantar e andar. Sensação leve e diferente, a
conquista de um passo após o outro. Estranha satisfação, mas real,
voltar a andar pela calçada foi como fazer o gol da vitória de uma
partida de futebol !
Ficar
contemplando a plenitude azul, intenso azul, depois de grossa chuva,
satisfação semelhante a ouvir um concerto esfuziante e alegre de
Mozart...
Abraço
dezembro e quero multiplicar verbo indomável, abraçar os amigos,
alimentando a teimosia de viver , ultrapassando minhas limitações,
falhas, desencontros, olhar mais uma vez o limite azul e continuar
meu caminhar sem escolher direção , com a certeza que devo ir..
12/2010