sexta-feira, 31 de maio de 2013

O menino que se chamava Fiapo


Fiapo, menino franzino, serelepe, corria descalço por entre os barracos, valas de esgoto, sempre sorrindo, de olhar esbugalhado, brilhando curiosidade, decisão, desafio, intimidando qualquer pessoa.
Morava na favela do Socó com a avó e a mãe. Nasceu fora do peso, sete meses, desnutrido com complicações respiratórias, foi batizado as pressas a pedido de dona Conceição, ela dizia aflita que a criança era um fiapo de gente ! Vingou na vida graças a sua avó, dona Conceição uma das primeiras moradoras da favela, sustentava a filha e o neto, aposentada, sofreu e lutava muito na vida. Ela foi uma liderança importante na favela por melhorias essências como água e luz, incomodou políticos, a prefeitura, lutar por seus direitos naqueles dias era sinônimo de subversão. Por sua dedicação e coragem conquistou o respeito de todos, até daqueles que viviam a margem da lei.
A filha engravidou solteira, abandonou a escola, não tinha juízo, começou com muito custo a trabalhar como diarista. Fiapo cabulava aula para ir jogar bola ou soltar pipa perto da linha do trem, e foi lá que precocemente conheceu o sexo, com mulheres que desejavam ter aventura e prazer com garotos. Era de opinião, duro na queda, não deixava-se levar na lábia dos outros, metade dos amigos começou a cheirar cola, fumar maconha, envolveram-se no crime, ou estavam presos ou mortos de bala, seu vício foi a bola, o futebol.
Destacou-se com a bola nos pés, entrou no time infanto-juvenil da favela o Esperança futebol clube, no inicio foi por que o treinador distribuía pão com mortadela antes dos treinos. O Esperança cresceu na comunidade, destacou-se no campeonato entre favelas classificando-se para as finais e por fim ganhou a competição. O Esperança futebol clube campeão! Foi uma festa geral na favela do Socó !
Naquela noite sonhou com um homem forte, negro, de machadinha na mão, olhar severo, seu olhar transmitia generosidade, Fiapo sentiu que esse homem iria protege-lo como um pai que nunca teve. Despertou agitado, sentindo cheiro de incenso do terreiro que a avó Conceição frequentava.
Fiapo era o craque do time, um olheiro profissional esteve naquele jogo da
final para descobrir novos talentos, gostou do garoto, procurou informações e um dia voltou a favela para conversar com os responsáveis por Fiapo.
A conversa foi longa, dona Conceição desconfiada custou acreditar que seu neto iria ganhar a vida jogando futebol, pediu garantias, o homem trouxe um contrato, o clube comprometia-se com benefícios para a família toda. Conceição, sabia ler e escrever e era experiente com as coisas da vida e antes dela e a mãe de Fiapo assinarem, Fiapo pediu a palavra e disse que só sairia da favela com a avó e a mãe.
E assim foi, Fiapo e a família mudaram-se para o litoral paulista, próximo a sede do clube, agora tinham uma casa, conforto, frequentava a escola, e tinha um só objetivo  realizar seu sonho com a bola nos pés. O homem forte, das machadinhas, sempre o visitava nos sonhos, agora com um olhar paterno...




2013

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A REDE

cabeça de peixe
dorme no prato
sonho em textura de sal
cabeça de peixe
mares, oceanos
identidades sem digital
mineral cumplicidade da porcelana e o animal

cabeça de peixe
genealogia abissal
milagre da multiplicação
cabeça de peixe
indumentária calcária
pré-existência dum alfabeto
em movimento natural
estrelas fulgurando geometria

cabeça de peixe
sonha o som
sonha o ser
cabeça de peixe
apenas esqueleto
apenas escuro
mapa sem instrumentos
âncora não existe
peixe sem ser.



quinta-feira, 23 de maio de 2013


Terça-feira



Inesperadamente surpreendeu-se ao sentir a existência de modo singular pelo odor, odor suave, trazendo uma lembrança nostálgica, revigorante, como se pudesse ter nas mãos a essência da vida. O odor narcotizante entrava pelas frestas da janela.
A novidade trouxe-lhe desordem de emoções, fragmentos de fatos, torvelinho de comoção e euforia demasiada. Aquela terça-feira começou diferente como se tudo anteriormente vivido tivesse sido apagado e um livro novo abrir-se-ia a frente dos olhos.
Não irritou-se como de costume com o pouco dinheiro, o ônibus lotado, metrô lotado, desconforto, empurrões, resmungos, começou a achar que a cidade amanhecera cheia de esplendor, beleza.
A luz matinal refletia sobre as vidraças, ângulos diversos dos edifícios  iluminando ruas, as pessoas, e trazendo a sua mente os segredos da vida, revelação que o transformaria, sentindo-se senhor da existência, ordena a si mesmo completa revolução, aniquilando o velho homem que fora.
E assim aconteceu transfigura-se em um semi-deus e começa a sentir um amor inesgotável pela humanidade e essa deveria conhece-lo por inteiro, em todo o seu esplendor e poder. Começa a despir-se em plena Praça da Sé, tira calçados, paleto, calça, camisa, cueca, joga para o alto documentos, celular, relógio provocando grande tumulto e escândalo.
Uma viatura policial acionada o recolhe, é enviado para um centro de assistência psico social   onde é medicado e lá encontra seus futuros seguidores....

2013

domingo, 19 de maio de 2013



Linha & anzol




...madrugada e trem urdido de vento, gravetos, folhas caídas
correndo entre casas dormindo
uivos longínquos
montanhas lunares
cio de estrela enfeitiça
amor cicatrizado

trem veloz expelindo
retalhos de um dia azul
estátuas ensolaradas
asa de borboleta
retratos ancestrais

movimento pesado sobre meu corpo
trem passando
madrugada despida entra no quarto 
trazendo potes de versos, raízes cantantes, flores de luz
corpo a corpo
nívea fome 
metamorfose das horas
madrugada despedindo-se
amor escrito em pergaminhos 
rolando nos labirintos da cidade
trem onírico desaparece alaranjado
no amanhecer do meu rosto.  


sábado, 18 de maio de 2013


Gênesis

...negritude negritude
emoção exposta enquanto dormem os planetas
cidade oculta corpo ilimitado das palavras
tatuagem esperançada na pele
pluralidade da nudez
negritude negritude
revelação da fragilidade
a carne do sonho incendiada
girassóis
despindo a solidão do corpo
sonho destrancado
negritude não existe
os ponteiros do relógio disparam
emoção sem cabeça viajando ruas desconhecidas
cidade dentro da cidade
âncoras e flores de sal.
Países vividos na vertigem da velocidade
armazenar pétalas e perfumes selvagens
negritude negritude
acasalada coreografia dos corpos
atravessando madrugadas
relâmpagos iluminando amor esparramado
por entre a geometria urbana
textura emocionada nutrindo o sono dos fetos...
1987




Réquiem ao poeta
17 de agosto de 1987

...das montanhas de Itabira
drummond poesia de andrade
bordado na rosa do povo
algum amor e metalurgia
forjando alguma poesia
atrás dos óculos
o nome da tua carne (Carlos)
movimentou a máquina do mundo
verso do alquimista...
De coração aberto
verso de tinta amorosa colorindo
o oceano das multidões
as montanhas de Minas
guardando poema raro
o poeta traduzindo
sonho das pedras
arquitetura das florestas
a força do amar em cotidiana verdade
domando selvagem solidão das cidades
um país sem idade
sem códigos dentro do homem carlos
drummond poesia de andrade
mineiramente
o anjo torto saiu da sombra
silencia a palavra
o itabirano morto
a luz apagou
a poesia comovida
e agora carlos ?


quinta-feira, 16 de maio de 2013


Vera e suas cruzes II


Tupã faz despertar a floresta,
Vera resplandece em cor e luz
revelando plena beleza das florestas, dos sertões de águas cristalinas
a correr pelas veredas,
montanhas reverberam verde vigor.
Acordes, frases musicais,
passaredo multicor compondo sinfonia
textura de natural beleza
a encantar as matas, o espaço azul
sertão e floresta um só esplendor !

Vera abriga nos braços fauna e flora expostos ao contrabando multinacional e
cegueira oficial !
Vera desnuda brilha sensual
atlântico litoral como joia a brilhar
contraste que abala e estarrece
pululam hediondas favelas
crianças famélicas pelas cidades
abismo da desigualdade social !

Vera mastiga amargo fruto
da impunidade
da corrupção
da luxúria ostensiva
Vera perde a candura
condoída fita
Iracema sem identidade sem lágrimas a perambular na beira da estrada
a prostituir-se.

Ubirajara globalizado enterra seus deuses ancestrais
quer barganhar sua reserva.


Vera respira democracia
sem censura, sem cadeira de dragão
sem opressão a vigiar ruas, fábricas, escolas
proletariado é livre para cantar, protestar, mas caminha
alienado, seduzido pelo populismo
Proletários despertai !

Vera defenda as florestas dizimadas por criminosa moto-serra !
Labaredas transformam a paisagem em pastagem e carvão
trabalho escravo
conflitos de bala e morte
garimpo predador a destruir, envenenar os rios
Vera exaurida, acuada,
assiste sua riqueza sendo espoliada.
Jovem guerreiro da floresta e pajé a dançar, mbarakas nas mãos em sintonia
com o sagrado para salvar pindorama
Dança pajé
ressurja poderoso guerreiro...
Caipora, Caipora onde estás ?
Vera rompe a chorar
lágrimas amazônicas
invadindo margens e várzeas
ruidosa pororocá briga com o mar.

Do velho continente, ventos de mal agouro
planejam os piratas e marines tomar a amazônia
bandeira em brasil
cuspida pelo selo oficial !
O espectro de Antonio Conselheiro brada delírio pelas caatingas

levantar o quinto império
os guerreiros de de Dom Sebastião impotentes não libertarão das cruzes Vera
e seus filhos.


Abaixo do Equador
muitos pecados por rasgar !
Vera atônita assiste nos palácios de Brasília novos senhores de engenho enebriados
na demagogia, finória hipocrisia, praticar chicanas, trafego de interesses,
despudorados saqueiam riqueza nacional, dividem baú colonial
depois lavam as mãos
bandeira em brasil
auriverde desbotada !
Oh ! Vera ! Despe-se dos bastardos que continuam a prostituir tua carne !
Vera sofrega com o peso das cruzes busca em seu clamor justiça social
independência real,
tecer límpida flâmula !

Ecoam os ataques
urge erguer quilombos de cidadania
Vera ergue tuas mãos para transformar a nação
vibra o berimbau...
Nas capitais opulência e miséria irmanadas
compondo estigma barroco a estagnar o sangue de Vera !...
Nas periferias floresce o narco trafego, a fábrica da fome
violência e opressão para os pobres
ufana ideologia fomentada por reluzente burguesia.

Vera evoca os Orixás
ecoam nos terreiros cantos e atabaques
Olorum despertai o povo para a cidadania e dignidade
vamos saravar !
Abram a gira a abençoar os filhos de Vera...
Oxum guardai nossas riquezas da ambição estrangeira !


Oxossi ! Com teu arco e flecha protegei as florestas da poderosa máquina financeira.
Ogum ! Levantai tua espada contra a corrupção palaciana...
Ibeji ! Protegei nossas crianças com a saúde, o abrigo de um lar
Yansãm ! Limpa com energia a imundice de nossa auriverde flâmula !


Dançam os Orixás
ecoam os atabaques
saravá Oxalá !
Vera afasta de ti esse cálice de doente aguardente !
Pinte tuas faces como os guerreiros da mata, ti acerca dos guerreiros de Ogum e sejamos
senhores da história, livres da servidão!....
Com o imponente jatobá
com a resistência da arueira
viola nas mãos a pontear forte canção
brava gente brasileira !
Nossas mãos a semear o florescer de pungente nação
liberta será Vera de suas cruzes !
brava gente brasileira !!....


2009



sexta-feira, 10 de maio de 2013


Outono




Abril ardia frio no rosto. A claridade intensa o obrigava a baixar os olhos e fitar a calçada. Sons quebrados, pensamentos incompletos abarcavam aquela manhã. Nem lembrava se havia trancado a porta ao sair de casa, encolhido andava pela rua, com a conta da luz vencida, uma receita de analgésico nos bolsos e o gosto de café requentado na boca, subitamente foi surpreendido com um carro em alta velocidade invadindo a calçada e o atropela.
Morre antes de dar entrada ao pronto-socorro. O vento cortava feito faca afiada naquela manhã...