sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

DESCONECTADO EM SP



Enquanto a tarde crepitava debaixo do sol, os olhos despiam ruas, avenidas, vitrines, bares lotados, edifícios, corpos suados, carros velozes cruzavam os labirintos da cidade, vibrando no ar cores, sons, odores, sensualidade e calor.
O suor escorria no rosto, camisa entreaberta, barba por fazer, caminhava pela calçada admirando a luminosidade tentando decifrar os sentimentos das faces anonimas que passavam ao redor. Os olhos percorriam o cenário urbano colecionando as expressões faciais dos pedestres.
Naquela tarde ele queria apenas perambular pelas ruas do centro velho, andar pela rua Direita, Galeria Olido, Praça do Patriarca, XV de novembro, Boa Vista, Ladeira Porto Geral, Largo de São Bento, Viaduto do Chá, Líbero Badaró, passar pela avenida Ipiranga, praça da República, talvez tomar um chopis no bar Guanabara, comer um bauru no Ponto Chic, yakisoba na Liberdade ou baião de dois no Bexiga, sem itinerário certo deixando o tempo passar, olhar, paquerar a
morena, a loirinha, a japonesa, a mulata... até cansar-se e retornar, voltar para casa. Ao contrário da maioria admira os prédios antigos sua predileção é ficar olhando como um fotografo detalhes que passam desapercebidos, curvas , semi-retas, ângulos, estilos, o efeito da luz ... imaginando como deveria ter sido a vida na São Paulo antiga, assistir filmes de época em preto e branco sua predileção.
Luzes acesas, a tarde vai chegando ao fim, faróis inclementes, um sentimento oco dentro do peito, vento frio varre as ruas, as lembranças carcomidas. Continua com seu andar distraído sem pensamentos pré-concebidos, identificando sensações, que o confortam ou negligenciam. O sol alaranjado rapidamente vai escorregando na linha do horizonte, desaparecendo entre os prédios, carros, na solidão dos pensamentos. Anda sem pressa, levanta a gola da camisa abotoa o bleizer, protegendo-se da brisa fria. Distraído, não preocupa-se em procurar os ponteiros de um relógio, escuta os próprios passos, a respiração, atravessa as ruas imaginando a sequencia dos minutos no cotidiano das pessoas ao seu redor.
Os faróis ferem os olhos, desnudando ansiedade, angustia, solidão dos transeuntes. Um mar de carros, ônibus, vão congestionando as principais vias da cidade, buzinas, sirenes. Uma mistura de sentimentos embaralham-se acomodando sentimentos difusos, nostalgia sem explicação, imagem sobrepondo imagem, refletindo no brilho dos seus olhos, enquanto a noite encobre de vez com seu manto os edifícios, então muda de direção e vai para a estação Anhangabaú do metrô. Quando o vagão chega, abre as portas, as pessoas na plataforma entram e logo começa a andar. Ao sentar-se no banco do vagão dá conta que passou o dia inteiro desconhecendo as manchetes dos jornais, não preocupou-se com telefones deixando-se levar pelo acaso, o que lhe proporcionou alivio e um breve sorriso de desdem desejando que não houvesse a próxima estação para descer, não houvesse ponteiros para aprisionar o tempo, agendas, documentos para guardar, rotular comportamentos, objetos, pessoas, sentimentos, classe social...pegou a caneta escreveu o simbolo do infinito na mão e soltou gostosa gargalhada, ninguém no vagão entendeu nada...

30/03/2012


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

REI DE PAUS



Todo final de tarde quando havia sol, ela ficava na janela observando o firmamento, a composição das nuvens, o efeito dos raios de sol, deixando alaranjada toda a paisagem urbana. Seus olhos ficavam fixos em um ponto como que buscando ver o que os olhos não podem alcançar. Encosta-se a parede observando o firmamento até surgirem as primeiras estrelas, o movimento dos carros, o brilho vermelho das lanternas, o congestionado anárquico, não a incomodavam, só olha para o espaço como se estivesse saudosa do impossível.
Ela tinha na parede da sala acima do sofá dezenas de pequenos quadros com fotografias dos familiares, paisagens, flores simplórias, recordações quase perdidas, a maioria das fotos eram em preto e branco, somatória de uma existência.
Seus olhos revivendo as cenas do passado, às vezes parecia ouvir vozes familiares, amigos ausentes, até músicas que nunca mais ouviu. Lembra ternamente dos almoços de domingo quando tios, primos, os filhos ainda crianças ficavam reunidos A velocidade do tempo devorando os momentos felizes é implacável, agora restavam recordações guardadas como numa revista antiga.
A televisão ligada vai desnudando os fatos, imagens da cidade, cotidiano de risos e lágrimas, Cibele ao mesmo tempo que pensava o que preparar para a chegada das meninas, ouvia atenta o apresentador da TV. Os cabelos castanhos crisalhos escovados, os olhos amendoados e brilhantes, ainda guardavam a beleza da mulher atraente que fora na juventude. Guerra no Oriente médio, terremotos na Asia, o perigo de uma epidemia de dengue, denuncias de corrupção, os gols do sábado, serviços públicos mal administrados, era o resumo do jornal diário.
Pensava na maldade que corria solta no meio da humanidade, tantas injustiças, o país perdendo sempre para a roubalheira, essa maledetta razza ! Um dia vão prestar contas no inferno, no inferno ! Pusemos um operário em Brasília, e ficou tudo na mesma ! Os amigos, os “companheiros” mamando nas tetas do governo, as custas do povo! maledettos! Mas, Deus nos livre, ditadura nunca mais ! Assim Cibele extravasava seu desencanto diante do televisor. De repente o telefone toca, era Carminda, dizendo que estava chegando para jogar buraco, a Judite e a Clarinha, estavam trazendo o vinho, providencia-se as pizzas.
Não demorou meia hora chegaram falantes, a pizza chegou junto, Carminda chegou com a língua afiada querendo saber da vida de fulano e sicrano, Clarinha só escutava, Judite aumentou o volume da televisão e imperativa mandou Carminda fechar a boca, queria ouvir a novela da cozinha, depois da pizza, ia começar a jogatina ! Carminda ficou emburrada com Judite achou um resto de cinzano no barzinho, e foi logo afogando seus azedumes. Cibele achava graça, essas três, desde o colégio não crescem ! A pizza aquecida no forno já cheirava por toda a casa... Televisão desligada e somente ouve-se as canções de Roberto Carlos embalando aqueles corações carentes.
Risadas, provocações e vinho, as quatro reunidas na mesa, começavam pelas coisas corriqueiras, banalidades do dia-a dia, de repente alguém levantava algum defunto esquecido e então começava a sessão de provocações . Duas garrafas de vinho vazias, quatro mulheres reunidas com amarguras e sentimentos reprimidos , uma noite nunca foi suficiente para abrigar tantos imbróglios e desabafos dessas mulheres, comungando seu sabbath semanal sem caldeirão sem magia, sem presença masculina, mas motivado por ela.
Tiravam no par ou impar as parcerias, caneta e papel para as anotações, e outra garrafa de vinho na geladeira. A noite e´uma criança ! Dizia Judite. As cartas começavam a rodar na mesa. Com pequenos sinas faciais Cibele e Clarinha comunicavam-se, já Carminda e Judite tinham ótima habilidade com as mãos.
Cibele sempre foi como a irmã mais velha de todas, quando tinham qualquer dúvida ou problema recorriam a Cibele, a mais lúcida e equilibrada entre elas. Estava estudando astrologia e quiromancia, aprendendo a fazer velas aromáticas, parecia uma cigana, ia ler e saber o destino de todas, Clarinha era tímida, sentimental, vivia lendo livros, agora não desgrudava de uma tal Helena Blavatsky nem sabe dizer como apareceu aquele livro na sua mão, precisava sempre da companhia das amigas. Carminda explodia em extroversão, rodava a baiana por qualquer coisa, adorava vender produtos de beleza, era a mulher do Avon. Judite não ficava atrás, gostava de aprender novas receitas, fazia salgadinhos para festas e casamentos, sua fama já extrapolava o bairro, autoritária sempre apimentando uma conversa. Todas tinham uma coisa em comum estavam na menopausa, filhos criados. Viuvez e divórcio, era a situação civil naquela mesa. A amizade entre elas era marca registrada, em vários momentos uniam-se na alegria e na tristeza e nas vitórias do Corinthians, as quatro programavam as idas para o Pacaembu para torcer pelo alvinegro, conheciam tudo de futebol.
O jogo na mesa, Cibele e Clarinha lideravam a pontuação, os coringas pareciam procurar as duas, Carminda olhava desconfiada para as adversárias. As vezes olhava debaixo da mesa. Dizia que era preciso ficar de olho aberto na esperteza da Clarinha,que toda hora fazia canastra e logo batia, pegando elas de mão cheia. A segunda garrafa de vinho já estava no fim...
Um rei de paus, só faltava ele para uma canastra limpa e começar a virada na pontuação Judite ansiosa mentalizava a carta como que atraindo com um imã a carta para suas mãos, varias rodadas e nada, o outro rei estava morto no joguinho de trinca baixado por Cibele e Clarinha. Somente quando pegaram o morto, Carminda aliviada baixou o rei de paus e finalmente canastra real ! Logo deram um jeito de descarregar todas as cartas e bateram para iniciar a virada na pontuação. Todo momento importante do jogo para ambos os lados coincidentemente a carta do rei de paus muda a história do jogo.
Carminda foi a primeira a abrir o perigoso arquivo sentimental, expondo feridas mal curadas do passado. Lembrando sempre com amargura da relação difícil com o ex-marido. Sentimentos partidos subiram a tona, o casamento foi deteriorando com o passar dos anos, traições, relacionamento agressivo, até chegar a agressão física. Os homens são uns canalhas ! Galinhas ! Tudo foi estressante até o divórcio, depois veio a libertação, agora ela vivia a vida ! e tomou um longo gole de vinho. Todas tiveram relacionamentos complicados no casamento, mesmo as viúvas Clarinha e Cibele.
Judite foi tirando do arquivo fragmentos de uma relação tortuosa, mentiras, traições de ambas as partes, até o divorcio. Dizia de boca cheia que com outros homens sentiu realmente sua sexualidade vibrar, com o ex-marido tudo era frustração, dissimulação diária.
Mas de repente o clima pesado, transforma-se com uma grande gargalhada de todas, pois, agora estavam livres de relacionamentos torturantes, podiam fazer o que lhes viesse a cabeça e não precisavam mais dar satisfação para nenhum machão egoísta. Levantaram os copos com vinho e brindam a Baco. Baco e Roberto Carlos eram as únicas personalidades masculinas aceitas por elas em sua reunião semanal.
O jogo termina, Cibele prepara acomodações para todas dormirem na casa, pois, ninguém ali estava em condições de dirigir com a quantidade de vinho consumido. Durante o sono de todas, sonham estar em luxuoso quarto de motel, com lingeries de renda preta e cinta liga, a espera do amante charmoso, elegante, vestido de rei de paus, seduzindo e amando a todas intensamente, satisfazendo suas secretas fantasias, refazendo quando necessário, pequena tatuagem de henna, o naipe de paus delicadamente desenhado no ombro de cada uma. Pela manhã acordam sem fazer comentários, trocando olhares saciados e cúmplices, tomam café e logo depois o grupo separa-se, para novo encontro no sábado seguinte, sempre sob a regência de Cibele, a guardiã de todas.

13/03/2011


domingo, 23 de fevereiro de 2014

ARADO E SEMENTE


Todas as palavras escritas
esperam outras nunca ditas
verso e reverso num só fruto
amadurecer o açúcar
Instante de todos os sabores
escandalosa sede das raízes
desnudando verbo equilibrista
labirintos de perigo e salvação
calendário abrigando
bibliotecas banhadas no sal.

Palavra indomável
amor em silencio e escuro
a fecundar planícies estéreis
corpo inexorável
sou...
demasiado humano.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

ESTRELA DA MANHÃ


ver vermelho entardecer
tarda a primeira estrela
signos urbanos sem sintonia
distorcido ritmo
pentagrama quebrado
descompasso comovendo olhares exauridos.
Concreto oceano de luzes
abrigando sentimentos famintos
cálice amargo sorvido
cravar os dentes
verbo e semente
renasceremos nas primeiras horas da aurora.
Ver brilhar primeira estrela
ver brotar raiz e navio
irmanados como aprendizes
rota e instrumentos
diante da curva linha do horizonte
argonauta e cotidiano bravio...


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

 SENHORES PASSAGEIROS, BOA VIAGEM !
Um homem consegue olhar para dentro de si e ver sua própria imagem ? Sem temer ? Olhar a própria nudez, não a nudez física, a essência crua revelando o
ser essencial. Sem maquiagens, adornos, mascaras, números de identificação. Sem mesmo o próprio nome. Apenas o homem ?
No banco de cimento da praça Carlos olhava fixamente o brilho solar por entre as folhas das arvores, Sentia alivio, conforto, só queria ficar ali hipnotizado com o movimento do vento sobre as folhas refletindo pontos de luz e esquecer. Um homem pode fugir de seus pensamentos ? Ignorar talvez. Pensou. Sentado na praça durante horas Carlos procurava nos labirintos dos anos, sua essência, como se fosse possível encontrar outro homem Carlos.
Sentado no banco da praça parecia uma estatua viva, queria esquecer, apagar a lembrança de Laura. Nunca tinha tido envolvimento serio com mulher alguma, sempre manipulou os sentimentos femininos, agora via-se envolvido completamente estava apaixonado doentiamente por aquela dissimulada. Queria sair dali entrar num boteco e tomar uns tragos, e mandar tudo para o inferno, mudar
tudo na vida !
Um belo final de dia cheio em luminosidade, contrastando com o amargor que sentia. Carlos, demitido no fim do expediente, o porco do gerente, com aquele olhar sínico o sentenciou na lata ! O senhor esta na rua ! Passe no DP amanhã ! Sem emprego, dividas para pagar, de repente, começa a dar escancarada gargalhada, rir da própria situação. Levantou, ajeitou a camisa, a calça, atravessou a praça, a rua, entrou no bar encostou o cotovelo no balcão pediu uma cerveja, uma aguardente.
Em dois goles tomou a aguardente, fez cara feia, a imagem de Laura surge a sua frente, fora enganado estava pensando até em casar. Ela o traia durante meses com um homem bem mais velho, um executivo. Começou a desconfiar e num descuido dela ele silenciosamente descobriu a traição. Corno e desempregado ! Logo seria motivo de piadas. Laura me paga ! Disse para si mesmo.... Estava com um trinta e dois no bolso interno do paletó, não podia aceitar tamanha vergonha ! Adquiriu a arma de um garoto, um pilantra conhecido nas baladas.
Liga para Laura, não atende, cai na secretaria eletrônica, que merda! Laura estava evitando falar, enfurecido Carlos começa a caminhar pelas ruas do centro da cidade sem direção certa, se pudesse desaparecer seria ótimo pensou. Quase vinte horas, as luzes e reflexos noturnos brilhavam, machucavam seus olhos sua alma, as pessoas caminham apressadas pelo calçadão, transtornado Carlos tromba com varias pessoas, é xingado, empurrado cai na calçada. Levanta, resolve ir esperar Laura chegar em sua casa. Ficaria escondido como um assaltante para surpreender aquela vira-latas, assim aconteceu. Pegou o ônibus, desceria alguns pontos antes de chegar em sua casa e ia cobrar satisfações daquela sem-vergonha, piranha ! Amava Laura, a desejava com loucura, não ia permitir que outro homem a possuísse. Estava disposto a tudo ! Envolto a pensamentos de ódio e vingança ele escondeu-se num terreno baldio no meio dum matagal próximo a sua casa.
Laura morena escultural, olhos negros penetrantes, lábios carnudos, pernas torneadas, seios fartos sem silicone, atraiam os olhares masculinos para si, sentia-se extremamente vaidosa com isso, sabia esnobar os homens e manipula-los, bancária, sub-gerente, estudava a noite, fazia curso de contabilidade, batalhou muito para conquistar seu espaço, tratava os homens como bem entendesse, não via a hora de despachar o Carlos com sua fixação em casar.
Queria ser livre apenas, usar os homens quando quisesse, obter vantagens materiais dos homens, não ter compromisso. Precisava dar o fora no Carlos, ele estava muito pegajoso, agora que estava de novo caso com um executivo do banco de Londres, homem de meia idade, todo certinho mas caiu na sua lábia, o fulano tinha muita grana e vivia babando por ela. Pensava num apartamento chique, sair do bairro distante ! Morar nessas quebradas, pegar metro, ônibus lotado, chega ! Ia pedir um carro para o seu amante, por que não ? Ele estava montado na grana, um carro não era nada para ele. Agora o Carlos...esse era um duro que vivia fazendo contas! Um trouxa que comia na palma de sua mão bem quietinho. Precisava despachar o Carlos logo. Ele estava ligando toda hora, cobrando coisas, que saco ! Nunca gostou de dar satisfação.
Naquela noite o encontro entre os dois não acontece pois, Laura não vai para casa, resolve ligar para para o outro e combinam encontrar-se no shopping e dali foram jantar na Alameda Campinas, enquanto Carlos fica de tocaia no matagal. Cansado de esperar, e bêbado, adormece por ali mesmo, na madrugada é surpreendido por dois assaltantes um deles é o mesmo que vendera o revolver, lhe tiram tudo até as cuecas ! Fica nu. Desesperado não sabe o que fazer. Começa a andar pela rua, buscar ajuda, precisava encontrar um orelhão, ligar para alguem o socorrer.
Enquanto isso Laura estava no motel seduzindo com seus talentos sua nova vitima , o executivo de banco que estava completamente enlouquecido, com suas caricias. Ela ficava excitada a cada nova aventura sexual, necessitava sempre de variadas experiencias para saciar seu desejo. Um novo amante era como conquistar um brinquedo novinho até que quebrasse....
Carlos acabou indo parar na policia. Uma viatura é acionada para encontrar o tarado que andava nu pelo bairro, uma denuncia por telefone informara que havia um tarado solto pelas ruas. Ele explica ao delegado parte do que tinha acontecido, o assalto, estava sem o revolver, a tentativa de homicídio ficou apenas em sua intenção intima o que melhora sua situação. Foi liberado, com roupas doadas. Carlos volta para o apartamento, não consegue dormir, da janela olha fixamente a cidade impiedosa, a pista solitária do minhocão, sente a alma deserta, humilhado pelo filho da puta que vendeu o trinta e dois, desejava mais do que nunca vingar-se de Laura !
Carlos Oliveira, 27 anos, ex-encarregado de seção, demitido, e corno ! pouca coisa para escrever no curriculum, necessitava buscar o pão de cada dia com esforço. Iludido por um amor leviano, Laura mulher sedutora, dissimulada, uma aventura sexual, apenas atração física... Agora percebeu-se usado, sempre fora um “bon viveur”, agora foi jogado fora, um trouxa ! Um corno caído na sarjeta da vida....Logo pela manhã estaria na fila dos desempregados, entregando curriculum nas agencias de emprego.
Atordoado, Carlos vencido pelo stress acaba por adormecer no sofá, os primeiros raios da madrugada reverberam pelos prédios, ruas, avenidas, casas, alaranjando a anárquica arquitetura urbana. Acorda com a luz solar no rosto. Novo dia, la fora os desafios do cotidiano espalham-se para cada habitante da cidade.
Laura percebe o distanciamento de Carlos, passaram-se duas semanas e ele não ligou mais, o remédio deve ter resolvido, estava em ótimo andamento seu plano de conquista, a tão desejada independência financeira. Detestava lidar com certos tipos, mas a necessidade forçava a solução de problemas, liga para Pedro, e este, confirma que Carlos havia caído direitinho na sua trama, deixaram Carlos nu depois do assalto, sem arma, sem lenço nem documento. Um leve sorriso forma-se em seu rosto, o “laranja” não preocuparia mais pensou, garante a Pedro o restante do dinheiro combinado, tinha que livrar-se daquele chiclete !
Pedro rapaz boa pinta, caiu na marginalidade, jovem de classe média, sempre teve tudo o que quis, começou como aventura com pequenos furtos no shopping, roupas de grife, formou um bando para sequestros relâmpagos, clonavam cartões, entrou no trafego de drogas, peixe pequeno, numa boate conheceu Laura, satisfaziam-se ocasionalmente. Ela passava a Pedro dicas dos bons clientes depois participava da divisão do dinheiro. Laura vivia construindo teias para os homens que a assediavam, e os usava conforme seus interesses e ambição.
Carlos durante semanas perambula pelas agencias de empregos, condomínio atrasado, telefone vencendo, finalmente é convocado a apresentar-se a uma empresa com inicio imediato. A velha historia de sempre, salario apertado, cortar despesas, emprego longe, acordar cedinho, esperanças que morrem e revivem depois.
Inicia na empresa no almoxarifado, empresa de eventos publicitários em plena expansão no mercado, começar do zero era a alternativa de Carlos, mas não esqueceu de Laura, dia a mais, dia a menos ele lhe daria o troco.
Amadeo Valadares, o mais novo enebriado por Laura, homem de meia-idade com cargo executivo e testa-de-ferro do banco de Londres, divorciado, bem solucionado na vida, poderia até parar de trabalhar como empregado, mas tinha ambição pois sabia que poderia chegar mais longe ! Funcionário de carreira no banco de Londres, banco que só movimentada altas contas e transferências gordas para o exterior.
Frequentava a casa, festas de grandes empresários, confidente de mulheres insatisfeitas, políticos, advogados, jornalistas, lideres religiosos, influenciava sem aparecer em contratos comerciais, acordos políticos, obtinha informações antecipadas de licitações do governo, lhe custando pagamento de propinas, mas valia a pena pelo retorno, mantinha atualizada agenda de clientes especiais. Conhecia bem as fraquezas humanas, suas taras, os segredos da alma humana e com maestria manipulava as situações a seu favor. Tinha tramite em toda a alta burguesia paulistana, embora não fosse homem refinado de alta cultura, representava facilidades para quem quisesse transformar dinheiro sujo em dinheiro limpo, enfim era ótimo te-lo como aliado, bastante conveniente em momentos de dificuldades, personagem temido, ardiloso, severo com os caloteiros pois, tinha seus contatos discretos na criminalidade, verdadeira eminencia parda conhecia o mapa dos desvios e atalhos do sub-mundo.
Estava cego de paixão por Laura, numa das feiras do automóvel no Anhembi a conheceu, modelo radiante atraindo clientes para si e venda de carros, mordeu a isca, podia ter um catalogo de mulheres, mas estava louco de desejo por Laura, sabia de sua fama de peçonhenta, mas assim mesmo a desejava, parecia um feitiço, agora estavam juntos numa grande e definitiva jogada, não poderia dar errado estaria alcançando a riqueza e poder que sempre desejou na vida.
Junto com Laura, Amadeo criou uma ONG de fachada, “Esperança Verde”, captaram somas de dinheiro do trafego de drogas, contrabando de pedras preciosas, cigarro paraguaio, armas, jogam o dinheiro em campanhas eleitorais, projetos ecológicos como utilização da energia do mar, reciclagem de lixo industrial, utilização racional da agua, pesquisas com plantas medicinais e cosméticos, preservação dos mangues, do peixe-boi, tudo bem acobertado pelos bons contatos na receita e policia federal, a ONG impressionava até populares, repercutindo em Brasília, conseguindo prestigio, demonstrando sua preocupação com o futuro, só que nenhum projeto saia do papel, tudo virtual. Amadeo sorrateiramente era homem forte no trafego há muitos anos, sua fantasia de executivo ocultava e escancarava portas, tudo ficou mais fácil com a onda das ONGS. O empresário, cabeça da “Esperança verde” era um homem discreto que ninguém conhecia, não aparecia em publico, verdadeiro filantropo. Era o Carlos, laranja, ex-de Laura, usaram seus documentos, para abrir a ONG, e uma conta corrente conjunta com Laura no Caribe, para onde remetiam grandes somas de dinheiro. Estavam preparando um golpe final, pois seu contato federal o alerta sobre a dificuldade de manter oculto a lavagem do dinheiro, então começou a apressar a transferência para a conta conjunta de Carlos o dinheiro dos clientes especiais mais o montante dos outros investimentos feito isso sairiam do país rapidamente antes da bomba estourar, e assim Laura e Amadeo sairiam em turnê pelo mundo e bye bye Brasil....
Carlos aos poucos refazia-se do baque, levava uma vida comum a todo assalariado, não queria complicação com mulher, queria viver em paz refazer sua vida. Quase estava esquecida sua vingança quando, passado meses do convívio atordoante com Laura, fica estupefato com a manchete dos jornais: ONG Esperança Verde e Carlos Oliveira na mira dos federais !
Assustado com a coincidência do nome, compra o jornal para ler a matéria, a policia federal estava na busca do cabeça da falsa ONG que fazia trafego de drogas, lavagem de dinheiro, e um monte de merda, caramba ! Seus documentos e a papelada das falcatruas da falsa ONG já estavam na mão dos federais, era questão de dias para prender o cabeça.
Laura aquela filha da puta ! Pediu uma vez meus documentos para abrir um crediário, mentirosa, foi para me enterrar vivo ! No caminho para o trabalho decidiu que tinha que resolver em definitivo essa armação ! Foi atras de Laura, não a encontrou na agencia que trabalhava, tinha saído do banco. Foi até sua residencia, a casa estava fechada. Pula o muro, a vizinhança não percebe a invasão, força a porta dos fundos e entra, começa a vasculhar tudo até encontrar uma agenda com endereços e telefones, sai ao encontro de Laura. Liga para algumas pessoas como se fosse um parente distante que estava chegando em São Paulo e precisava encontra-la, surpreso descobre que ela estava a algumas semanas morando num aparte hotel na Bela Vista próximo a avenida Paulista com um executivo de banco estrangeiro.
Carlos precisava encontrar Laura antes que o pegassem, vai até o aparte-hotel fica nas proximidades observando o movimento, depois de meia-hora, ela aparece, desce de um taxi, ele avança para cima dela e agarra seu braço com força. Preciso de uma satisfação ! Por que você me prejudica ? Estou para ser preso ! Megera !
Atônita e surpresa com o repentino encontro Laura pede calma a Carlos convida-o para subir no apartamento para conversarem evitando os olhares públicos.
Nervoso e tremulo Carlos entra no prédio segurando o braço de Laura, eu devia torcer o seu pescoço ! Ela sentia forte atração por Carlos, mas ele tinha grave defeito, não tinha grana, mas suas qualidades de amante a excitavam. Carlos observa os detalhes de luxo do apartamento, e percebe aquele brilho de desejo nos olhos de Laura, resolve avançar sobre seu corpo, ela cede, beija sua boca, desabotoando sua blusa. Despidos, ela o conduz para o quarto, para o conforto dos lençóis macios....
Carlos poderia ser preso a qualquer momento, com certeza a policia já tinha baixado no seu emprego, não poderia voltar. Laura muda os planos, afinal poderia te-lo como amante também, Amadeo não tinha preconceitos e poderia aceitar bem ter os dois como amantes, manda Carlos ficar no apartamento esperariam por Amadeo, e o levariam para o Caribe.
Ao anoitecer Amadeo chega no apartamento, sua reação é tranquila ao deparar-se com o Carlos, o laranja, Laura usa sua conversa sedutora, maliciosa, para convencer Amadeo, afinal usando Carlos eles conseguiram dar o golpe certeiro que os deixariam em questão de dias ricos. Carlos tinha qualidades como amante e ela sempre desejou ter dois homens e Amadeo não era um conservador na cama, sensibilizou-se com a situação de Carlos e ele era atraente, simpático... adorava improviso.
Mais uma vez Laura consegue seu intento, era preciso providenciar passagem, documentos falsos e uma boa maquiagem para disfarçar Carlos e sair do país. Em questão de dias tudo foi providenciado e então os três amantes, ricos e vistosos, chegam em Cumbica com suas bagagens, embarcam num boeing rumo ao Caribe, de praias paradisíacas, enquanto as manchetes dos jornais denunciavam com alarde mais um grande golpe financeiro na cidade.



30/06/2011


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014


ESPADA DE OGUM

É noite no meu país
meu país são meus braços
pernas claudicantes
É noite sem limites no coração
meu coração paulista, mineiro, baiano, amazônico também.

É noite no meio da mata
no meio da oca
velho cacique a evocar os deuses
floresta arde nas chamas
águia real em fuga
rios contaminados,
envenenam as lágrimas do manatim.

Mogno contrabandeado
emoldurando nobre côrte
Deus salve os piratas”...
No meu país sou branco, negro, mulato, índio,
É noite na Avenida Paulista, na periferia, no agreste, no pampa gaúcho,
e´noite sem luar,
noite de ferrugem e sal.

Auriverde capitania
triturada feito bagaço de cana
novos senhores da senzala
em vil aliança mercantil
prostituem as riquezas do Brasil
chafurdam na corrupção e mazelas
infame episódio
sustentando quinhentos anos servil.




Auriverde capitania
sangra pau-brasil
sua acorrentada história
no meio das cidades
meninos descalços
meninos prostituem-se
meninos famélicos
morrem de verminose, overdose,
pátria que os pariu...

No coração do Brasil
dançam os orixás
saravá Oxossi, Iemanjá, Ibeji, Jurema, Xangô,
Yansam,

saravá preto velho, baianos,
Oxalá,
lavando a dor,
lavando o pus,
espada de prata gira no ar !
Ogum e seus guerreiros.
Brilha espada de Ogum a desfazer noite de chicanas,
sombras, usuras no planalto central...
No céu brilha cruzeiro do sul
erguer inconfidente bandeira
refazer a luz de cada dia
construir com as mão novo Brasil !





quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

SOB O OLHAR DE NÊMESIS

Estávamos em setembro, estávamos perplexos, não houve primavera, nenhuma floração, predominavam dias frios de um azul avermelhado cintilante. Sentimento de estranheza no ar. Na rua as pessoas entreolhavam-se e quase diziam umas as outras: “Você percebeu que alguma coisa esta estranha ?”
Pardais, bem-te-vis, qualquer pássaro, voava emudecido pelas antenas e quintais, um silencio estarrecedor começou a incomodar, inquietação silenciosa que perturbava a todos, encontraram um argumento para explicar o fenômeno, a inversão magnética dos polos. Certa noite, nota-se a olho nu no firmamento um grande astro brilhando intensamente, emitindo cor roxa azulada assustando os curiosos. Seria o sinal do final dos tempos ? Sem mais nem menos, todas as igrejas, de variados credos, começaram a ter lotação completa todos os dias. Até mesmo os mais antigos sacerdotes, começaram a expor publicamente seus temores, sua perplexidade diante das mudanças inexplicáveis, o medo coletivo das pessoas, a ineficiente solução escatológica não correspondia ao anseio popular. Cientistas, profetas do apocalipse eram procurados pela mídia para explicar as mudanças na natureza em todos os continentes.
Um emaranhado de teorias, explicações cientificas, metafisicas pululavam
nos jornais, por todos os meios de comunicações, mapas enviados por satélites,
analises que mudavam a cada dia sem explicar a repentina alta das mares devastando cidades litorâneas, invernos rigorosos em regiões semiáridas, a morte de todas as especies de abelhas, pragas de insetos surgindo do nada devorando tudo, a mudança de comportamento dos animais domésticos, dos últimos animais que restavam nas reservas florestais. Os rios amazônicos começam a secar repentinamente, assim como todos os grandes rios espalhados pelos continentes, os períodos de estiagem prolongam-se, o processo de desertificação acelera-se, a água potável torna-se produto muito valorizado, motivo de disputas e conflitos bélicos. Banqueiros, o cartel internacional da droga, o vaticano, a maçonaria, seitas diversas, comunidade científica, líderes mundiais, grupos transnacionais, uniram-se secretamente e investiram volumosas somas de dinheiro para a salvação mundial, inócua busca para o desespero da burguesia. As nações ricas aceleram pesquisa e produção de tablete alimentar, ração humana, aproveitando lixo domestico, mas o que fica oculto da grande massa, e´ a reciclagem de proteína a partir de cadáveres, dando ao tablete alimentar porcentagem ideal de alimentação diária, condição para sobrevivência e tentativa de controle social. O atendimento psiquiátrico triplicou, surtos paranoicos agressivos, parecendo pandemia a varrer as cidades. A situação começou a ficar fora do controle, quando as colheitas de alimentos foi afetada principalmente nos países ricos os primeiros a sentir dramática mudança. Reuniões de cúpulas foram agendadas com urgência na sede das nações, o estado de sítio foi imposto, os exércitos saíram para as ruas para patrulhar a turba, prender e atirar em qualquer um que tentasse pilhar lojas, bancos, supermercados, até começarem a distribuir os alimentos racionados, posteriormente a ração humana. A economia mundial entrou em parafuso. A agricultura parou de produzir pois o solo estava esgotado e a agressiva radiação solar consumia as plantas e a exposição dos campesinos a luz acelerava rapidamente o sarcoma de pele. Quase não haviam peixes, algas marinhas, recifes, nos oceanos, enormes embarcações de lixo contaminavam os mares, as baleias estavam extintas, pequenos cardumes agonizavam por oxigênio. O planeta parecia rugir como animal acuado e ferido !
Então volumosas explosões solares começaram a afetar todas as transmissões, rádio, televisão, telefonia tudo parou de repente. O pânico toma conta das ruas das grandes cidades, incêndios, pilhagem, as tropas policiais rebelam-se e a partir daí a degeneração social acelera-se rumo a barbárie. Os ricos montaram nas suas propriedades castelos bélicos, armados até os dentes para defender alimento e
água potável, enquanto a massa miserável formava grupos de guerrilha para assaltar o pouco alimento natural que restava que era semeado e colhido em terras restritas, não contaminadas protegidas por estufas, inacessíveis, vigiadas para alimentar os ricos e sua descendência, aqueles que ainda tinham dinheiro compravam no mercado negro. O mercado negro proporcionou privilégios a pequeno grupo comercial, que manipulava a economia e o poder politico centralizado, enquanto a maioria agonizava diante da fome. O suicídio tornou-se a via mais fácil para fugir do desespero, do que restava da vida, procurava-se desesperadamente frascos com o elixir da esperança. A violência, a lei do mais forte corria por todos os lados, não havia mais valores morais, os compêndios jurídicos eram usados para acender fogueiras nas noites frias. A instituição do Estado desaparecera, a barbárie predominava finalmente, truculência, execuções sumarias, doenças contagiosas ceifavam vidas, canibalismo, violações, a vida humana estava movida pela impunidade, instinto de sobrevivência. A esperança jazia dentro de cada ser humano. Milhões de mortos, a humanidade dizimada agonizava vivendo o umbral semeado por ela mesma.
Sentia o suor escorrer no rosto, estava desesperado, corria tentando fugir, sair daqueles becos escuros e fedorentos, gritos de ódio, de horror, ensurdeciam os ouvidos, tristes figuras transtornadas vagavam como espectros pelas ruas no cenário dantesco.
Cansado, sentia muita sede, olhava a cidade destruída, queimada, tirava de dentro de mim toda a energia e corria sem direção certa pois a sombra da morte reinava soberana e não mais haveria dias de primavera para recordar, quando estava prestes a cair numa enorme vala de corpos, num salto de profundo desespero acordei bruscamente com a respiração ofegante, tremulo e olhos lagrimejantes....
21/10/2011


MOEDAS PARA CARONTE

Ele, Mendonça Petrarca, era um homem magro, alto, de poucas palavras, sempre casmurro, meia idade, trabalhava no departamento das Certidões Negativas em duplicata de Imóveis Alienados, precisamente, encarregado do arquivo morto. Pouco se conhece sobre seu passado, sua origem, sua fisionomia escolástica, medrava nas pessoas aversão, usava sempre um terno marrom escuro, meias soquetes pretas, gravata azul desbotada.
Mendonça Petrarca, trabalhava sozinho naquele galpão caindo aos pedaços repleto de arquivos antigos, quase não via ninguém, o chefe ligava no inicio de cada quinzena pela manhã, as vezes recebia pacotes das certidões para arquivar. Sentia-se soberano, todo aquele galpão ficava sob seus cuidados, zeloso, com os arquivos enferrujando, mantinha tudo organizado por ano, mês, logradouro, ficava horas colando as folhas rasgadas com durex, tinha cuidados de artesão, soberbo em sua responsabilidade, tinha mesa, cadeira e um pequeno ventilador presente do chefe, não permitia a ingerência de ninguém, somente seus superiores.
Era verdadeiro cão de guarda, armava ratoeiras em lugares pesquisados cuidadosamente, sentia enorme satisfação quando encontrava os roedores mortos, tinha metas mensais para o extermínio dos mesmos. Pensou em manufaturar uma máquina para torturar, multiplicar a morte dos ratos, era seu lazer, pensar qual o melhor método, usava muito chumbinho em rações variadas. As vezes ficava imóvel, bem quieto só observando o roedor ser degolado pela ratoeira, Mendonça revelava sua crueldade, seu enorme sadismo com a matança dos ratos.
Ele sentia-se realizado na sua função, mesmo doente, arrastava-se para não perder
o dia, conhecia todos os arquivos mesmo aqueles que ficavam na parte mal iluminada, em muitos fins de semana fazia reparos, principalmente trocando telhas quebradas, pois as goteiras eram sua grande preocupação. Mendonça ligava com antecedência para seu chefe, que providenciava tudo para que fossem realizados os reparos nos fins de semana, assim a rotina da semana estaria garantida. Todos os processos tinham que estar em bom estado, carimbados e rubricados por Mendonça.
Ele vivia há muitos anos numa pensão antiga do centro da cidade próximo a estação de trem, região decadente, conhecia os pontos dos traficantes e prostitutas, ninguém o incomodava, por garantia Mendonça andava com um potente punhal. Há anos atrás, apareciam ao amanhecer pessoas assassinadas, todas envolvidas com a contravenção, cirurgicamente mortas, a polícia investigou os casos, mas não houve muito interesse em resolver pois os assassinados tinham longa ficha policial. Naquela época os militares estavam no poder então certas coisas passavam desapercebidas, amordaçadas.
Mendonça Petrarca, era homem temido, antes de estar como Encarregado do arquivo morto, fora policial do DOPS, aparecia quando o delegado o convocava, sabia de muita coisa e participou de tantas outras, tomava cuidado para não deixar rastro. Era estimado pelos graduados, ajudou a desenvolver a “cadeira de dragão”, máquina de tortura que traumatizou para sempre muita gente. Nos dias de folga, ia até o IML, nos plantões do doutor Rodolfo, o conhecera numa “ocorrência”, tornaram-se amigos, gostava de assistir o doutor trabalhar, acompanhava tudo com muita curiosidade, admirava a destreza do médico com o bisturi, logo ele dizia como e o porque das mortes violentas, ou súbitas. Não ficava impressionado, nem passava mal ao ver os cadáveres, nem sempre inteiros, ou em adiantado estado de decomposição. Aprendeu muito sobre a anatomia humana.
Como premio aos bons serviços prestados, ele foi nomeado como encarregado municipal, além de sua aposentadoria de policial. Acomodaram a situação para Mendonça antes mesmo dos generais deixarem o poder, antes da lei da anistia, para ninguém querer levantar as sombras do passado, assim foi parar no Departamento das Certidões negativas em duplicatas de Imóveis Alienados. No inicio estranhou bastante, mas com o tempo entendeu que precisava ficar esquecido em algum lugar insignificante.
Sua mente adestrada não admitia nada fora da rotina, metódico, ao andar pelos corredores do galpão logo percebia qualquer diferença, localizava as fezes dos ratos e então armava as ratoeiras, as novas goteiras depois de uma noite de chuva, eram anotadas por corredor para depois solicitar material de reparo para o chefe, só deixava as teias de aranha, pois gostava dos desenhos que elas produziam, assim realizava sua função com satisfação sádica, como obediente cão de guarda.
Ele respeitava e temia a religião, por influencia familiar, e quando mancebo leu o Inferno de Dante, única obra incompleta importante que leu na vida e desde então sentia pavor ao lembrar das descrições medonhas do umbral, as vezes tinha pesadelos e via-se junto com os condenados sendo açoitado pelos demônios. Acordava apavorado. Guardava esse pânico secretamente, não deixava de ir a igreja na semana santa, para tentar aliviar sua consciência, diminuir suas penas depois dessa vida. Mas tudo que fez foi ordem superior, o país estava uma baderna ! Sem ordem, disciplina, tudo vira anarquia!...Alguém precisa agir ! Contra os comunistas !
Sua vida amorosa ficou restrita a um caso que teve com uma enfermeira, Verônica, trabalhava no pronto socorro, plantonista, conheceram-se quando ele estava no DOPS, ela lhe passava psicotrópicos. Ela conseguiu gostar do Mendonça, engravidou, mas teve complicações no parto e faleceu, a criança nasceu morta. Nunca mais teve um relacionamento sério, só saia com prostitutas, as vezes as surrava por puro prazer, algumas vezes foi parar na delegacia mas nunca seu nome apareceu em um boletim de ocorrência, saia sempre limpo.
Mendonça Petrarca, levava sua vida anônima, medíocre, da pensão para o galpão, fazendo estatísticas da matança de ratos, a quantidade de telhas repostas para o chefe. Numa sexta-feira ficou até mais tarde , carimbando os processos, saiu tarde da noite, as ruas eram mal iluminadas, poucas casas, havia um trecho deserto, escuro, para percorrer. Seguia tranquilo, quando uma brasília de repente passa correndo aproximando-se dele e uma voz lá de dentro grita: seu filho da puta !
Lembra de mim ! apontando um trinta e oito e descarrega as balas em seu peito e cabeça. Não houve tempo de reação, o corpo de Mendonça ficou estirado na calçada, esguichando sangue. Eis que Mendonça Petrarca foi ao derradeiro encontro com Caronte, prezado leitor...

25/02/2011



quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

 O SENADOR


Sentia-se confortável em seus pensamentos, não compreendia tanto incomodo das pessoas em relação a sua rotina de vida, costumes pouco comuns, roupas sempre de tonalidade escura, maquiado com sombra e lábios negros, não era nem punk, nem nada, ouvia as alturas Sexy Pistols, Marlyn Manson e Black Sabbat. O rapaz, tinha uma personalidade mesquinha, confusa, geralmente desagradável saia pouco de casa, ia para o colégio, algumas vezes ia ao cinema assistir suspense ou filme de terror, fazer racha de madrugada com seu carro envenenado, beber escondido o melhor uísque de sua mãe, preferia mesmo o onanismo solitário. Com quinze anos ele criou um alfabeto de compreensão própria, escrevia longas cartas para si mesmo. A professora descobriu a estranha criação, assustou-se mandou chamar a mãe. Orientou a mãe para consultar um psicologo, ele estava sempre isolado dos colegas de classe, seu aproveitamento escolar era crítico, a mãe Dóris indignou-se, tirou César Augusto da escola.
César Augusto tinha orgulho do seu nome, leu na enciclopédia que o imperador romano, fora um tirano que teve em suas mãos todo o mundo conhecido. Transformando Roma em capital do mundo. Sua mãe passava uma lista de atividades culturais e assim ele desenvolveu seu lado auto-didata, achava suas professoras medíocres.
Sua mãe recebeu uma intimação, fora denunciada porque o garoto não cursava escola, o juiz determinou que o rapaz deveria ser matriculado em escola imediatamente se não ela perderia o poder pátrio. Algum invejoso a denunciara ! Voltou a frequentar escola, mas não dava atenção a quase nada, não contestava a escola para não criar problemas para a mãe, fazia as provas sem quase estudar, conseguia as notas para fechar o ano.
Era apaixonado por história antiga, egiptologia, a biografia de Champollion e a pedra de Roseta, alquimia, astronomia. Ler a biografia dos grandes imperadores, Napoleão, Gengis khan, Alexandre, Nicolau Romanov, aguçava sua atenção, seus olhos brilhavam, mas seu ídolo maior era Hitlher, depois de ler “Minha vida”. Era muito estranho aquele rapaz, assim diziam os vizinhos. Gostava de cuidar das plantas da casa, aprendeu muito com o jardineiro, outra coisa bastante incomum para um adolescente, dizia para sua mãe que sentia as plantas como a si mesmo, Dóris comovia-se com a sensibilidade do filho.
Tinha estranha percepção das coisas, ficava furioso com visitas inesperadas, pois geralmente causavam danos as suas plantas, apenas de olhar elas começavam a adoecer e ele sentia a energia negativa. Quando provocado por qualquer pessoa sua ira irradiava-se e a pessoa começava a sentir dores de cabeça. Seu olhar de ira era tenebroso. Cresceu solitariamente, era de poucas palavras, nunca soube nada de seu pai, segundo sua mãe ele morrera quando era bebê, não havia interesse de sua parte em conhecer quem fora seu pai, isso pouco importava a ele. O pai herdara os negócios, tinham fazendas, banco, industria têxtil, eram de uma tradicional família quatrocentona, mas começou por tudo a perder por falta de capacidade em gerenciar os negócios da família e iniciar uma vida de vícios, todos os tipos, desde corrida de cavalos até chegar as drogas, um dia morreu de overdose num motel numa festa de orgia. Gastaram bom dinheiro para a verdade não ser revelada no noticiário policial. Dóris, sua mãe conseguiu, manter o patrimônio da família, mantinha tudo abafado. César ficava muitas horas trancado na biblioteca lendo Paracelso, Agrippa, Julius Evola, Fausto de Goethe, os seus preferidos, aos poucos tornou-se um triste místico fascista.
Criava em seu isolamento um mundo próprio de poder e ambição, até que apaixonou-se pela primeira vez, quando fazia cursinho. Lilian, mudou a rotina de sua vida. Misteriosa, inteligente, charmosa, esnobava os rapazes, só que César conseguiu mudar essa trajetória. A garota também tinha preferencias estranhas, maquiagem gótica, apaixonada pela lua, esoterismo, vodca, ovinis, rituais com cristais, essas coisas que no passado da humanidade levavam o fulano para a fogueira sem piedade, esse interesse singular dos adolescentes acabou aproximando-os além da atração física.
Lilian não queria admitir que foi amor a primeira vista, Augusto estranhou a novidade e foi rendendo-se ao inédito sentimento. Os primeiros encontros tímidos foram longe do cursinho, dos poucos amigos, queriam privacidade para lidar com esse sentimento que promovia tremores, desejos ardentes, saudade do outro. O primeiro beijo entre os dois foi atormentado, nada cinematográfico, virgem fúria, um calor abrasivo envolveu os dois, logo sentiram-se muito excitados.
Estava anoitecendo, a lua cheia escancarada no espaço era testemunha exclusiva do selvagem sentimento, dos beijos trocados. Parecia que formavam o par perfeito, uma melodiosa história de amor com bizarros personagens.
Os dois tornaram-se unha e carne, isoladamente já causavam receios, juntos tornavam o potencial de estranheza multiplicado. Juntos sentiam-se mais fortes, pois não estavam adequados a realidade, cada vez mais buscavam suas identidades no passado , não conseguiam conviver com os jovens da sua idade, procuravam sempre o isolamento, o místico, o lado escuro da lua. Lilian era a ovelha negra da família, suas irmãs sentiram até alivio quando ela começou a namorar César, o rapaz esquisito...
No cursinho, nas escolas, os estudantes começaram a organizarem-se para demonstrar indignação pública contra o governo Collor, quase todos do cursinho participaram das passeatas pedindo impeachment, os estudantes do país todo saíram nas ruas para pressionar o congresso, o falso “caçador de marajás”. Collor de Melo renuncia ao seu mandato e cai no ostracismo.
Lilian e César passaram completamente alienados aos fatos, diziam que era
subversão, o movimento estudantil, Lilian aparentava rebeldia em certos momentos mas na verdade era uma reacionária, foram acampar nas chapadas dos Guimarães junto com uma turma que pesquisava ovinis e juravam que iriam conseguir ter contato com os ets. Sua mãe ficava satisfeita com o filho, não tinham grandes conflitos, Dóris era uma colaboradora fanática do estandarte rubro do leão dourado, preferia as confusões misticas de César Augusto, do que saber que seu filho fosse um comunistoide de merda ! Um agitador ! Pra que democracia ? O país precisa é de ordem !
Durante a viajem pensou em articular uma falange clandestina, unir um grupo de pessoas superiores, com o propósito de combater o atraso, a fraqueza da pátria, as pessoas inferiores, negros, prostitutas, nordestinos, comunistas... mas não iria por a mão no trabalho sujo, era necessário ter contato com a marginalidade. Acabou esquecendo o assunto pois era muito arriscado e difícil, ainda não tinha estrutura para tal.
A viajem foi frustrante para quem esperava algum contato com ets, não avistaram nada, a paisagem é que valeu a pena, o contato com a natureza, desconfortável, mas diferente, sair do centro urbano. Para os dois foi inesquecível pois perderam a virgindade e foram iniciados na cocaína e maconha.
Lilian acabou engravidando, a novidade foi um transtorno para as famílias, embora César tivesse sido repreendido pela mãe, ele não queria assumir nenhum compromisso, apenas continuar sua vida, Lilian teve culpa não quis usar anticonceptivo segundo ele, afastou-se de Lilian, deixou por conta dela, lavou as mãos. Lilian resolveu pelo aborto, angustiada procurou uma clinica clandestina para realizar o aborto, um dia vingaria-se daquele cafajeste ! O imprevisível sempre caminha ao lado sem que possamos perceber, complicações e infecção, levam Lilian a morte. César não compareceu ao velório, ao enterro. Mais uma vez sua mãe assumi as mazelas da família, mas tira seu cartão de crédito, as mordomias, ele é mandado para fora do país para estudar e depois assumir os negócios da família.
Passaram-se os anos César Augusto retorna, deixa esquecida a imagem do rapaz confuso, pusilâmine, ideologicamente de extrema direita, com um discurso da moda, neo-liberal para efeito na mídia. Diante dos olhos de sua mãe ele apresenta-se ativo, refinado, desenvolto, pronto a assumir a cabeça dos negócios, bajulado pela riqueza e prestigio , ele surge como nova liderança no mundo empresarial, em pouco tempo torna-se presidente da federação das industrias tornando sua ambição de poder e riqueza uma realidade. Dóris explode de contentamento e orgulho, saber do filho, homem realizado e prospero em fenomenal escalada, um grupo de amigos lança seu nome para o senado, estava trazendo consigo os interesses de uma grande multinacional da telefonia, o que lhe renderia conforto substancial, com a implantação de uma grande marca no solo brasileiro, dando ao país modernidade tecnológica, afinal os interesses de classe devem ser defendidos pelos melhores quadros nacionais.
Antes de assumir a cadeira no senado, mais uma vez o escândalo entra pelas portas daquela rica mansão dos jardins, numa noite de verão, Dóris retorna de viagem repentinamente sem avisar, a casa parecia quieta, ela adentra os cômodos, sobe a escadaria para os quartos e escuta do quarto do filho sussurros escandalosos, a porta entreaberta expõe cena inimaginável, César nu, em frenesi com seu assessor politico , em coito febril, Dóris transtornada, colérica, sente horrível dor no peito, grita de dor e desfalece caindo fulminada na entrada do quarto...

05/04/2011




segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

AMAR

A tarde seca abarcava de azul os olhos, a claridade e esplendor solar reverberavam de maneira pungente nos telhados e vidraças. Emoção escancarada espalha-se no ar, a cidade tremeluz diante do olhar, movimento incansável de veículos, reflexos, marcha de pedestres atravessando avenidas, faróis, olhares apreensivos cruzando-se, o pulsar incessante de sensações e sons circulam na geografia urbana.
Na Júlio Prestes a multidão espera silenciosa e exausta o trem abrir as portas, logo os vagões lotam e o trem sai lentamente em direção ao subúrbio, Ezequiel cansado agarra-se próximo a porta enquanto o vagão vai lotando de estação a estação. Corpos cansados, suados, predominando no ar amarrotado silencio. O desejo de num piscar de olhos estar em casa envolve o pensamento de Ezequiel, naquele instante o seu maior anseio. O imponderável nesse exato momento acontece, o trem para sem energia elétrica. Apagão, e as vaias e assobios, enchem os ouvidos.
Aborrecimento, cansaço, o trem parado faz quarenta minutos, ter que pegar mais uma condução depois é de deixar qualquer um estressado. Ezequiel acaba
por cochilar, de repente o trem recomeça sua marcha. Afinal ! uma brisa refrescante no rosto depois do apagão abafado é um conforto para todos, as janelas abertas vão desnudando a paisagem desgastada e mal iluminada do subúrbio.
Movimento férreo e exaustão, chegar tarde em casa, Ezequiel nem mais fica indignado, uma vez participou com a turba de um quebra-quebra de vagões pancadaria, pedradas, bomba de gás lacrimogêneo, por sorte escapou de ser preso. Perdeu o emprego por atraso na ocasião, não aceitaram justificativas, demissão sumária.
Finalmente chega em Osasco ! Sai do vagão praticamente expelido pela turba ansiosa. Finalmente é sexta-feira ! Ezequiel poderá dormir até as tantas horas do sábado. No largo de Osasco resolve ir até a Esquina do peixe, seu ânimo renova-se, sobe a Antônio Agú aliviado, depois do arrocho no trem. Chega e vai pedindo uma porção e uma cerveja bem gelada. Movimento intenso de carros e ônibus pela avenida dos Autonomistas, enquanto seus olhos não perdem de vista as garotas que passam de minissaia e blusa colada ao corpo.
Bebe com sede a cerveja provando a iguaria marítima crocante e saborosa. Sem mais nem menos uma morena sentada a sua esquerda começa a dar sinais, Ezequiel levanta e vai até sua mesa, puxa conversa, logo começam a se entender. Atraente, mulher madura, extrovertida, Míriam, quer companhia, curtir a noite, afogar suas carências e sentir o abraço forte de um homem, depois de uma semana de muito trabalho.
Ezequiel esquece o cansaço fica empolgado com o repentino encontro. Míriam conversa animadamente, olhar cativante, cabelos compridos negros, lábios finos, corpo atraente e perfume delicado. Ezequiel parece não acreditar no acaso, a sorte de estar com aquela mulher envolvente, ao fundo ouvia-se Benito de Paula emoldurando cenário perfeito, para uma noite de amor.
As horas passam os olhares tornam-se mais brilhantes, o efeito etílico os envolve aguçando o desejo então levantam-se e juntos vão para a casa de Míriam descendo a rua Antônio Agú em direção a rua Pedro Fioretti. Sem questionar ou
temer adentram na casa, logo na sala beijam-se sedentos, trocando abraços, despindo-se. Ezequiel procura o chuveiro e juntos banham-se. Bocas coladas, corpos nus, molhados em frenesi. Boca e língua de Ezequiel buscam os fartos seios, o ventre sedoso, o sexo em brasa de Míriam.
Madrugada a dentro repete-se várias vezes luta corporal, ritmo e movimento, Lábios sedentos, corpos que se entrelaçam em busca do extremo prazer. Sussurros, sons, numa cegueira em chamas. Duas vidas entrelaçadas, num encontro inesperado, sem prévio conhecimento, sem antecedentes. Vidas consumidas pela angustia de viverem solitariamente, então devoram-se até a claridade do dia iluminar os corpos abraçados nos lençóis.
Acordam ao mesmo tempo, próximo ao meio-dia, e foi a partir daquele instante e noite anterior que perceberam a cumplicidade de suas vidas, eles mereciam uma oportunidade em busca da felicidade, a volúpia selvagem que os envolveu, o entorpecimento sexual marcou profundamente suas existências e não haveria razão para continuar vivendo sós, por que não tentar viver juntos e esquecer os anos de solidão e amarguras, desgastados em perambular pelos bares a noite e mendigar amor. Trocaram confidencias comuns, começaram a conversar e reconhecerem-se iguais, retratos em preto e branco, vidas anonimas diluídas na angustia, encontros, desencantos, sobressaindo em comum a solidão e assim conversando o sábado foi consumido. Assim outros dias vieram, e assim Ezequiel e Míriam permaneceram juntos...
07/10/2011


domingo, 9 de fevereiro de 2014

 DEU NO JORNAL...


Agnes saiu de casa aquela terça-feira mais cedo, vestia uma blusa verde, saia curta de jeans, nem tomou café direito, apressada como todo o santo dia. Foi para o ponto de ônibus mas não esperou as colegas pegou outra condução foi para a Estação da Luz. Nervosa e decidida ela ficou esperando o ônibus , nem quis parar na banca para ler as manchetes das revistas de novela como sempre fazia, Agnes era franzina mas quando estava irritada, parecia uma onça raivosa, depois que recebeu um telefonema anônimo na segunda-feira ficou furiosa, mas não quis falar com ninguém, ligaram varias vezes, para seu telefone, infernizando sua cabeça com calúnias, a voz sínica insinuava sobre a masculinidade de seu namorado, pretendiam noivar, a voz dizia que Robertinho mentia para ela, ele era um travesti de teatro de stripper no centro da cidade,
queria ver para crer, chegando na Luz resolveu ir a pé até a Rio Branco. Seus pensamentos estavam em ebulição, não queria acreditar naquela denúncia, mas precisava saber a verdade. Amava o Robertinho, estavam namorando há quase um ano, ele retribuía com carinho e paixão ao seu sentimento. Robertinho trabalhava a noite, era digitador de um banco, conheceram-se numa festa de uma amiga em comum. Uma mistura de amor e ódio começaram a consumir seu pensamento. Agnes ligou para a empresa disse que não ia trabalhar estava com muitas cólicas, inventou essa história, e foi atrás daquela denúncia, precisava chegar na saída dos stripers do teatro na boca do lixo, ela queria acreditar que fosse apenas inveja, calúnia de alguma safada. Andava rápido, chegou na avenida Rio Branco, entrou numa das travessas e viu o teatro de strip-tease, “Rainhas da lambada”, lugar decadente, sujo, ficou atrás de um poste, escondeu-se, para vigiar a saída de Robertinho ou Vanessa, seu nome de guerra, segundo a denunciante.
Aquela voz maldita, fazendo ironia, disse que Robertinho não trabalhava em banco coisa nenhuma ele fazia show de estrip, que ele era travesti, Agnes chorou de raiva o resto da noite, mas de hoje não ia passar, ia conferir tudo. A dor maior era a mentira, não tinha preconceitos, cada pessoa tem o direito de fazer com sua vida o que quiser, mas aquela mentira era insuportável!
Uma porta lateral faz barulho, algumas pessoas começam a sair, fica atenta observando a saída barulhenta daquelas pessoas, não queria acreditar nessa situação, agora que estava grávida e ia contar a Robertinho. Sentiu-se culpada da situação, nunca especulou detalhes da vida dele, nem mesmo quando ele depilava o peito, pernas, axilas, dizendo que o homem atual tinha que criar um novo estilo. A idiota achou até chique ter um homem tão vaidoso. Estava sem saber o que fazer !
De repente vê Roberto saindo entre seus “colegas”, falante, rindo, o sangue ferveu e partiu para cima dele de tapas, unhadas, e palavrões, foi um grande alvoroço, os outros travestis sem saber, a agridem, ela despenca em lágrimas, Roberto atônito, surpreso, segura seus braços e pede para conversar. Ele anuncia a todos aos gritos que ela era sua namorada, quase esposa. Roberto muito nervoso, tremia, pedindo calma a Agnes, pois eles iriam resolver tudo. Aos poucos a confusão foi desfeita, o grupo falante afastou-se de Robertinho e Agnes, fazendo comentários jocosos.
Roberto ou Vanessa descobriu seu lado feminino na adolescência, quando começou a sentir atração por rapazes, mas manteve isso recalcado em sua alma, pensava que era pecado, a repercussão de escândalo na família, seu pai não podia saber nunca, o velho faleceu e nunca soube do sentimento do filho. Quando saiu de casa  conseguiu realizar seu desejo maior o de apresentar-se cheia de glamour num palco dançando e cantando I will survive, muita maquiagem, purpurina, lantejoulas loucamente sensual, para uma plateia masculina. Sua vida dupla era guardada a sete chaves, conseguira realizar seu sonho. Mas a atração por mulheres nunca desapareceu e isso as vezes o atormentava e foi levando a vida assim e não queria modificar. Era feliz como Roberto e Vanessa nas noites paulistanas, com luzes, perfumes, champanhes, amores, brigas, musicas e orgias. Seu maior sonho era ser uma personagem do filme: “Priscila a rainha do deserto” assistiu a esse filme dúzia de vezes.
Entrou com Agnes numa lanchonete e pediu dois cafés, sentaram-se e então ele pediu desculpas a ela por não ter revelado nada antes, ele realmente era um travesti, mas a amava muito e não sabia resolver essa dupla atração que sentia, chorou junto com Agnes pedindo perdão. Agnes foi ficando mais serena, refletiu sobre a inédita situação de amar um homem que sentia-se mulher e desejava ser uma.
Ela sem rodeios disse a ele que estava com um filho dele na barriga e como eles iriam resolver o conflitante momento. Roberto ficou sem ação, ouviu a novidade e não conseguia dizer uma palavra, uma mistura de sentimentos apertavam o seu peito, jamais pensou viver um momento tão singular. Ser pai era comovente, era angustiante, sua vida de travesti estava abalada, não tinha uma resposta a dar a Agnes.
Emudecidos ficaram trocando olhares, uma dor profunda apunhalava o peito de Agnes, nunca sentiu-se tão sozinha, sua mente estava mergulhando num vácuo profundo. Roberto perguntou como ela ficou sabendo de sua outra identidade, ela respondeu que foram telefonemas anônimos, não quis acreditar, mas a verdade foi revelada de forma abrutalhada. Roberto pediu que ficasse entre eles dois sua identidade.
Agnes sentia-se traída e amarga. Sua vida era uma sucessão de dificuldades desde a infância, era apenas uma recepcionista, vivia com grandes dificuldades, sua única tia morava no interior de Minas, era sozinha, nem pai nem mãe. Estava só no mundo. As horas iam passando e não houve nenhum acordo entre os dois. Estilhaços afiados pareciam boiar no ar, atingindo Agnes profundamente ferida em seu amor.
Emudecida, perplexa, não disse uma palavra, levantou, e saiu deixando Robertinho murmurando palavras sem nexo, depois começou a chorar no balcão da lanchonete.
A cidade na sua rotina alucinante, contabilizou naquela terça-feira mais uma morte, ou melhor um suicídio, uma mulher jovem de blusa verde e saia jeans de cima do Viaduto do Chá lançou-se ao ar, seu corpo politraumatizado ficou estirado no calçamento empoçado de sangue, horas e horas, alguém num ato de piedade colocou folhas de jornal sobre o corpo inerte, acendeu uma vela, até que o rabecão do IML apareceu para recolher o corpo.




26/01/2011