copo
cheio de sede
...março vai terminando o país esta
revolto num processo de ebulição politica, a população dividida
manifesta-se contra o governo, outra parte a favor em manifestações
de rua. Começa a ventar frio durante as tardes com o horizonte
avermelhado. Preciso trocar meu curativo, ultimamente esta vazando
mais secreção da cicatriz, minha perna as vezes dói, aquela dor
chata, logo desaparece. Anoitece bruscamente trazendo a nostalgia,
gostaria de rever velhos amigos, resta apenas fragmentos, como
recortes que escapam das mãos e rolam no asfalto.
Carrego mais cicatrizes do que as que o
bisturi produziu no meu corpo em cinquenta e poucos anos de vida, as
horas passam vorazmente , comecei a rascunhar essa pagina numa agenda
velha de 2007, quando adolescente não desgrudava da minha máquina
de datilografar portátil, presente paterno. Escrevia todos os
dias, deixando fluir o impulso de criar identificado com o mundo das
palavras e a fome de ler diversos autores, cometi um erro que me
deixou marcas, aos dezenove anos escrevi meu primeiro livro de
crônicas e poesias, sem orientação enviei uma cópia para a
editora que escolhi. Assim fiz errei em não mostrar a alguém
experiente para ouvir uma opinião diferente. Enviei a cópia para
a editora Civilização Brasileira no Rio de Janeiro, depois de meses
recebi a resposta. Enio Silveira leu meus manuscritos e foi incisivo
em sua critica ácida, não me desmotivou e encontrei nas
imperfeições o caminho para o meu escrever poesia. Na minha sede
por superação passei a ler mais, ser exigente comigo mesmo,
procurei como podia na época, a biblioteca publica foi meu recurso,
era muito precária, busquei pelos grandes autores, um destaque foi
“Cartas a um jovem poeta de Rilke”, minha necessidade de
expressão multiplicou-se, passei a escrever melhor, com Carlos
Drummond de Andrade meu melhor mestre junto com os modernistas fui
moldando minha expressão poética, e superar a poesia confusa e
prolixa, destroçada por Ênio Silveira. Os anos foram passando e a
constância em ler e escrever me proporcionaram atingir um escrever
poesia que sempre desejei Por alguns anos mantive aquela carta
guardada até que um dia consegui rasga-la em multiplos pedaços....
A minha máquina de datilografar hoje fica guardada no
armário...como um trofeu, enquanto meus livros de poesia na
estante permanecem vivos dentro de mim. Depois nunca mais consegui
que alguma editora aceitasse receber meus manuscritos, surge um
desafio a enfrentar e persistir na minha criação poética.
Posteriormente comecei a participar de
antologias de poesia, em várias tive meus poemas publicados,
inicialmente gostei pela divulgação, mas depois percebi que o poema
publicado torna-se anonimo no conjunto do livro pois, são vários
autores de estilos diferentes, fica apenas a satisfação da
publicação e o desejo que um imaginário leitor, leia seu poema
e o aprecie….Levo comigo que escrever é preciso, “escrever
salva”, lembrando Clarice Lispector.
Desligo o controle remoto do passado e num
instante os sons das coisas vividas, misturam-se com o presente,
vozes adormecidas na memória, ressurgem na correnteza das horas,
formando painel ludico. Logo a madrugada abrira seus braços, no
rádio o locutor revive os fatos do dia anterior, o planeta continua
sua jornada pelo infinito, assim percebo que é um milagre viver sem
ter dominio sobre nenhuma célula do corpo.
Minha esposa dorme, minha filha dorme, logo o
apartamento estará pleno de luz matinal e o cheiro de café nos
alertara para os rituais do cotidiano. Bem-te-vis em grande
estardalhaço anunciam a continuidade da existência, imagem
sobreponde imagem desenrola-se pelas ruas e bairros, ecos urbanos dão
o timbre da sinfonia metálica. Despida de identidade a marcha
humana desenha sua rota diaria em engessado ritual. Signos, sons,
movimento, formando cenário instável passando a frente dos olhos
e gravados na memória como roteiro repetitivo.
…roteiro que escrevemos sem papel sem
caneta, sempre vivo nas paredes, nos muros, nas casas, pela
periferia, na memória, movimento igual dos dias envolvendo-nos
impedindo a percepção do diferente, até que algo nos toque e
ilumine nosso interior e provoque o criar algo.
De repente uma goteira na torneira da
cozinha quebra meu distanciamento do real e preciso interromper o
ritmo eterno do gotejar na pia. Com um alicate e paciencia
resolvi o problema , enquanto o noticiário da TV repete a grande
manifestação na avenida Paulista contra o governo do dia
anterior....
Minha lenta recuperação da cirurgia
obrigou-me ter mais parcimonia comigo mesmo, o elevador do prédio
esta em manutenção, não posso sair do apartamento. Barba por
fazer, fui ao banheiro e comecei a raspar a barba enquanto ouvia as
noticias do meio-dia, guera na Síria, maldito jogo de poder e
sectarismo onde crianças e mulheres são as principais vítimas, o
elevador volta a funcionar.
Desci para tomar sol, aquecer o
corpo....mergulhei no azul gigante do meio-dia...embasbacado com o
azul permaneci imóvel a contemplar o estupor da cor perfeita, todos
os tons de azul me encantam, as cores sempre fascinaram meu olhar, as
variações de tons , luminosidade, a incansável sede de
interpretar a inquietação, a partir da justaposição das cores
compondo cenário criativo saindo da mente invadindo uma tela ou
folha de papel, iludindo a mente com a satisfação ou a angustia e
principalmente dominar os demônios internos... assim esqueci as
horas desfrutando da fugaz felicidade, momento singular sem
dissabores....
Vento no rosto, meus passos vagarosos, tudo é
liquido e fácil de ser diluído, talvez ninguém vai importa-se com
esse texto escrito em 2016, tudo é descartado rapidamente, todos
vivemos uma fome voraz sem sentir o prazer do sabor e seus nuances.
Sentado debaixo de uma quaresmeira fiquei a
observar o meu andador, primeiro imaginei um artro podo depois um
animal e conclui que a pessoa que inventou o andador foi um gênio,
ele é apoio fundamental junto com meus braços para poder sair
caminhando, as pessoas sem deficiência física não imaginam as
peripécias que nós deficientes temos que pensar e fazer para um
simples caminhar, cumprir tarefas simples dentro de casa...adaptar
nossos limites na vida, mas quem quer saber algo sobre as pessoas que
não conseguem sair de suas casas ?... O calor aquece meu
corpo....conforta meu silencio.
As horas foram passando, um fragmento luminoso abre minha lembrança,
me vi andando pela rua Libero Badaró entrei na papelaria do Rosário
e me deparei pela primeira vez com uma caixa de giz pastel e curioso
comprei e assim encontrei o instrumento adequado para expor minhas
emoções com aqueles bastões coloridos....iludindo meu cérebro como
se eu fosse naquele momento o proprietário da cor azul, verde,
vermelha...Assim comecei a compor com papel canson cenas cheias de
cor e emoção, aprimorando técnica própria.
A satisfação de completar cada cena as vezes me deixa saciado,
outras vezes não, a tarde foi avançando as cores do firmamento
modificando, meus braços, meu rosto ficaram bronzeados, recordei dos
dias, semanas que fiquei sem poder sentir o calor do sol
O movimento de carros aumenta dentro do condomínio, os moradores
começam a retornar. Sentado no banco deixei aquela sensação plena
de bem estar sobressair observando o astro-rei avermelhado despencando
na linha do horizonte. Ao adentrar no apartamento ligo a televisão
que anuncia outro episódio da guerra sectária no oriente médio,
dantesco incêndio em favela de São Paulo...
A
noite desaba sobre os prédios, minha esposa e filha chegam ao mesmo
tempo, logo o jantar é posto, olhares em comunhão e conversa
animada , a hora dispara, um trovão repentino anuncia chuva. Chuva que lava a cidade, promove o germinar do capim entre as frestas de cimento, inunda os córregos, lava nossos pecados, o espirito, chuva a saciar
a sede da cidade.