domingo, 10 de julho de 2016

copo cheio de sede

...março vai terminando o país esta revolto num processo de ebulição politica, a população dividida manifesta-se contra o governo, outra parte a favor em manifestações de rua. Começa a ventar frio durante as tardes com o horizonte avermelhado. Preciso trocar meu curativo, ultimamente esta vazando mais secreção da cicatriz, minha perna as vezes dói, aquela dor chata, logo desaparece. Anoitece bruscamente trazendo a nostalgia, gostaria de rever velhos amigos, resta apenas fragmentos, como recortes que escapam das mãos e rolam no asfalto.
Carrego mais cicatrizes do que as que o bisturi produziu no meu corpo em cinquenta e poucos anos de vida, as horas passam vorazmente , comecei a rascunhar essa pagina numa agenda velha de 2007, quando adolescente não desgrudava da minha máquina de datilografar portátil, presente paterno. Escrevia todos os dias, deixando fluir o impulso de criar identificado com o mundo das palavras e a fome de ler diversos autores, cometi um erro que me deixou marcas, aos dezenove anos escrevi meu primeiro livro de crônicas e poesias, sem orientação enviei uma cópia para a editora que escolhi. Assim fiz errei em não mostrar a alguém experiente para ouvir uma opinião diferente. Enviei a cópia para a editora Civilização Brasileira no Rio de Janeiro, depois de meses recebi a resposta. Enio Silveira leu meus manuscritos e foi incisivo em sua critica ácida, não me desmotivou e encontrei nas imperfeições o caminho para o meu escrever poesia. Na minha sede por superação passei a ler mais, ser exigente comigo mesmo, procurei como podia na época, a biblioteca publica foi meu recurso, era muito precária, busquei pelos grandes autores, um destaque foi “Cartas a um jovem poeta de Rilke”, minha necessidade de expressão multiplicou-se, passei a escrever melhor, com Carlos Drummond de Andrade meu melhor mestre junto com os modernistas fui moldando minha expressão poética, e superar a poesia confusa e prolixa, destroçada por Ênio Silveira. Os anos foram passando e a constância em ler e escrever me proporcionaram atingir um escrever poesia que sempre desejei Por alguns anos mantive aquela carta guardada até que um dia consegui rasga-la em multiplos pedaços.... A minha máquina de datilografar hoje fica guardada no armário...como um trofeu, enquanto meus livros de poesia na estante permanecem vivos dentro de mim. Depois nunca mais consegui que alguma editora aceitasse receber meus manuscritos, surge um desafio a enfrentar e persistir na minha criação poética.

Posteriormente comecei a participar de antologias de poesia, em várias tive meus poemas publicados, inicialmente gostei pela divulgação, mas depois percebi que o poema publicado torna-se anonimo no conjunto do livro pois, são vários autores de estilos diferentes, fica apenas a satisfação da publicação e o desejo que um imaginário leitor, leia seu poema e o aprecie….Levo comigo que escrever é preciso, “escrever salva”, lembrando Clarice Lispector.
Desligo o controle remoto do passado e num instante os sons das coisas vividas, misturam-se com o presente, vozes adormecidas na memória, ressurgem na correnteza das horas, formando painel ludico. Logo a madrugada abrira seus braços, no rádio o locutor revive os fatos do dia anterior, o planeta continua sua jornada pelo infinito, assim percebo que é um milagre viver sem ter dominio sobre nenhuma célula do corpo.

Minha esposa dorme, minha filha dorme, logo o apartamento estará pleno de luz matinal e o cheiro de café nos alertara para os rituais do cotidiano. Bem-te-vis em grande estardalhaço anunciam a continuidade da existência, imagem sobreponde imagem desenrola-se pelas ruas e bairros, ecos urbanos dão o timbre da sinfonia metálica. Despida de identidade a marcha humana desenha sua rota diaria em engessado ritual. Signos, sons, movimento, formando cenário instável passando a frente dos olhos e gravados na memória como roteiro repetitivo.
…roteiro que escrevemos sem papel sem caneta, sempre vivo nas paredes, nos muros, nas casas, pela periferia, na memória, movimento igual dos dias envolvendo-nos impedindo a percepção do diferente, até que algo nos toque e ilumine nosso interior e provoque o criar algo.
De repente uma goteira na torneira da cozinha quebra meu distanciamento do real e preciso interromper o ritmo eterno do gotejar na pia. Com um alicate e paciencia resolvi o problema , enquanto o noticiário da TV repete a grande manifestação na avenida Paulista contra o governo do dia anterior....







Minha lenta recuperação da cirurgia obrigou-me ter mais parcimonia comigo mesmo, o elevador do prédio esta em manutenção, não posso sair do apartamento. Barba por fazer, fui ao banheiro e comecei a raspar a barba enquanto ouvia as noticias do meio-dia, guera na Síria, maldito jogo de poder e sectarismo onde crianças e mulheres são as principais vítimas, o elevador volta a funcionar.
Desci para tomar sol, aquecer o corpo....mergulhei no azul gigante do meio-dia...embasbacado com o azul permaneci imóvel a contemplar o estupor da cor perfeita, todos os tons de azul me encantam, as cores sempre fascinaram meu olhar, as variações de tons , luminosidade, a incansável sede de interpretar a inquietação, a partir da justaposição das cores compondo cenário criativo saindo da mente invadindo uma tela ou folha de papel, iludindo a mente com a satisfação ou a angustia e principalmente dominar os demônios internos... assim esqueci as horas desfrutando da fugaz felicidade, momento singular sem dissabores....
Vento no rosto, meus passos vagarosos, tudo é liquido e fácil de ser diluído, talvez ninguém vai importa-se com esse texto escrito em 2016, tudo é descartado rapidamente, todos vivemos uma fome voraz sem sentir o prazer do sabor e seus nuances. Sentado debaixo de uma quaresmeira fiquei a observar o meu andador, primeiro imaginei um artro podo depois um animal e conclui que a pessoa que inventou o andador foi um gênio, ele é apoio fundamental junto com meus braços para poder sair caminhando, as pessoas sem deficiência física não imaginam as peripécias que nós deficientes temos que pensar e fazer para um simples caminhar, cumprir tarefas simples dentro de casa...adaptar nossos limites na vida, mas quem quer saber algo sobre as pessoas que não conseguem sair de suas casas ?... O calor aquece meu corpo....conforta meu silencio.
 As horas foram passando, um fragmento luminoso abre minha lembrança, me vi andando pela rua Libero Badaró entrei na papelaria do Rosário e me deparei pela primeira vez com uma caixa de giz pastel e curioso comprei e assim encontrei o instrumento adequado para expor minhas emoções com aqueles bastões coloridos....iludindo meu cérebro como se eu fosse naquele momento o proprietário da cor azul, verde, vermelha...Assim comecei a compor com papel canson cenas cheias de cor e emoção, aprimorando técnica própria.
A satisfação de completar cada cena as vezes me deixa saciado, outras vezes não, a tarde foi avançando as cores do firmamento modificando, meus braços, meu rosto ficaram bronzeados, recordei dos dias, semanas que fiquei sem poder sentir o calor do sol
O movimento de carros aumenta dentro do condomínio, os moradores começam a retornar. Sentado no banco deixei aquela sensação plena de bem estar sobressair observando o astro-rei avermelhado despencando na linha do horizonte. Ao adentrar no apartamento ligo a televisão que anuncia outro episódio da guerra sectária no oriente médio, dantesco incêndio em favela de São Paulo...
A noite desaba sobre os prédios, minha esposa e filha chegam ao mesmo tempo, logo o jantar é posto, olhares em comunhão e conversa animada , a hora dispara, um trovão repentino anuncia chuva. Chuva que lava a cidade, promove o germinar do capim entre as frestas de cimento, inunda os córregos,  lava nossos pecados, o espirito, chuva    a saciar a sede da cidade.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016




Sentinela
                                                           em memória a meu pai  




                     ....setembro recortado
                         em manchas cinzas e elegia 
                         meio-dia o corpo de meu pai jazia
                         cicatriz aberta sem lágrima
                                                                      ao pó retornaremos
                                                                      encerra-se linha do tempo
                                                                      oxida-se biografia 
                                                                                        burocrático registro cartorial
                                                                                        memoria e torvelinho de lembranças

                          palavras secas
                          trancadas na boca
                          enquanto andava pela casa
                          setembro arrastando-se como cobra entre casas fechadas 
                          entre espelhos cobertos 
                          travessia pesada das horas 
                          levarei serena imagem do rosto paterno 
                          testemunho da saudade 

                                                                          trincado setembro
                                                                          ferindo as entranhas 
                                                                          a vida renasce na aurora 
                                                                          calendário e passos lentos 
                                                                          volume dos anos
                                                                          perdem-se as chaves usadas
                                                                          arquitetura da dicotomia
                                                                          textura de  amizade e resiliência.