quinta-feira, 12 de outubro de 2017

                               










                                                                        Copo cheio de sede II






                           


O telefone toca logo pela manhã quebrando o silencio, atendi, era propaganda de tevê a cabo....puta merda ! Desliguei de imediato, observando o aparelho em silencio recordo de Gilberto meu amigo poeta. Guardo suas cartas, poemas de estrutura dialética, concisos, revelando o conflito do homem urbano versus o homem do interior. Poesia de timbre forte, as vezes ríspida, plasticamente elaborada.
Um concurso de poesia no curso vestibular do qual fomos premiados nos aproximou permitindo a amizade e o culto à literatura. Gilberto apresentou-me Otávio Paz, Pablo Neruda e seu apreço por João Cabral de Melo Neto, nossa amizade atravessa a distancia e o tempo. Vencer aquele concurso me deu confiança, saber que estava no rumo certo , trabalhar meu estilo, enfiei a cara nos livros que conseguia comprar, emprestar, encontrei-me com diversos escritores, nessa fase da vida minha rebeldia tornou-se intensa afastei-me do catolicismo, da religiosidade, aproximei-me do marxismo. Paralelo a poesia queria encontrar uma alternativa politica, compreender o país, nossa sociedade, fui atrás de Josué de Castro, Paulo Freire, Celso Furtado, Caio Prado Junior, Sergio Buarque de Hollanda, o cinema novo de Glauber Rocha.... Escolhi por conta própria um caminho a esquerda, pois acreditava que seria a alternativa para o país, o tempo revelou o contrário.
Abandonamos o hábito de escrever cartas para amigos e familiares com o advento do e-mail e rede social. O telefone toca novamente, era tevê a cabo outra vez ! Fiquei furioso.... bati o telefone, fui para a cozinha tomar um café.
Qualquer dia ligo para o Gilberto para conversarmos sobre a vida, coisas comuns, a desilusão com o país, a familia, o minimalismo da angolana Paula Tavares ou por que não consegui passar da página duzentos de Ulisses de James Joyce abandonando o livro num canto qualquer. Gilberto parou de escrever infelizmente, agora dedica-se com a familia em seu pequeno comércio. As vezes rascunho um poema e publico-o no meu blog “A tradução da palavra”, divulgo o que escrevo para minha palavra repercurtir e atingir o leitor imaginário.
De repente um helicóptero da polícia sobrevoa rasante o bairro fazendo patrulha, escuta-se viaturas em velocidade pelas ruas, saio na varanda fico a observar, outros moradores fazem o mesmo, depois tudo cessa. Mais tarde sabe-se através da televisão sobre perseguição policial a assaltantes de banco. O vizinho ao lado liga estridente furadeira, o dia promete.
Antes que o stress predomine saio e vou andar pelo condominio, depois vou até o boteco do Paulão “point” dos aposentados para por em dia o noticiario local. Ouvir as estórias do sorridente Sebastião, as criticas zangadas do Chico, as brincadeiras do Paulão, veteranos moradores do bairro, bebo devagar uma gelada e volto para almoçar. Começa a ventar forte, trazendo o frio, nuvens cinzentas.
Vento persistente até o anoitecer varre as nuvens espessas, expondo céu escanradado e lua brilhando sobre o asfalto, as casas, o condominio, a periferia. Estou a ler Ana Cristina Cesar, graças a minha filha, estudante de letras, percorro com o olhar a estante, meus livros permaneceram vibrantes a provocar minha criação. Acabo com o café, aproveito até o restinho do copo, o exercício de escrever desafia, fascina, as vezes é angustiante. Escrevo e não basta ! Graças a minha esposa recuperamos meu velho parceiro Polivox três em um, peguei um vinil de Vivaldi, concerto de cordas e Cello e pus para tocar baixinho....O vento assobia pela fresta da janela sem parar. Começa a chover , a campainha toca, minha filha chega eufórica , depois comenta que os alunos da USP vão entrar em greve contra as arbitrariedades do reitor e cortes de verba. A porta da sala abre minha esposa chega molhada vai direto para o chuveiro, o disco termina, vou para a cozinha ajudar a preparar uma mistura para o jantar. Antes ligo o televisor, o noticiário politico esta efervecente. A pressão popular nas ruas finalmente coloca os politicos em cheque, o governo começa a ficar incomodado.
Meu pai tinha o costume de me ligar depois da janta falavamos brevemente sobre ene coisas desde mitologia grega, nórdica, a existência de Deus, os bigodes de Nietzsche, Kardec, a musica de Wagner, politica, ovinis, futebol, fatos corriqueiros sem concluir nada. Combinavamos o almoço para o final de semana. A figura paterna geralmente é vista com reservas, traumas, exemplo são “Carta a meu pai” de Kafka ou “Pai patrão” de Gavino Ledda, a presença de meu pai na minha vida ao contrário dos autores citados, foi marcante por sua alegria e amizade, ressalte-se que toda familia convive com seus problemas de relacionamento. Quando cursava o colegial, tive uma aula sobre o mito da caverna de Platão que me deixou entusiasmado e durante dias fiquei comentando com ele. Certo dia ele chega com um exemplar de “A republica” de Platão, edição de 1940 que ele encontrou num sebo. Lemos o mito da caverna na integra e depois debatemos a alegoria criada pelo filosofo. Meu pai apesar de só estudar até o madureza, era sedento por conhecimento e despertou em mim o gostar de ler.
Hoje o telefone não toca mais, fiz a mudança de minha mãe para perto de mim após a morte de meu pai, tranquei a casa. Não sinto saudades da casa que vivi a infancia e juventude. Minha mãe na casa dos noventa anos, quase cega, pergunta se alguem ligou, recorda primos e irmãos falecidos, seus contemporaneos que já não existem, todos os dias ela me pergunta se alguem ligou, então sobressai um silencio que incomoda...A voz do meu pai ecoa pelas escadarias da minha memória. Sua presença esta viva representada num pé de romã que ele me deu de presente, pedi ao jardineiro do condominio que plantasse próximo a minha varanda, assim posso ver o pé de romã crescendo e brevemente colher seus frutos. Deixo a luz do corredor acessa vou para a cama com o rádio de pilha ligado baixinho, ouço o resumo das notícias. Escuta-se ao longe motores acelerados no rodoanel, a motocicleta do ronda passando no condominio. Negra madrugada, é possível escutar um galo anunciando o alvorecer. Ogum faz sua ronda.
Predominam dias cinzentos e gélidos, agrava-se a crise política, economica no país trazendo recessão, inflação o desemprego. O impeachment sai das ruas e adentra no congresso nacional, os dias seguem...
A vida nos surpreende, não existe roteiro lógico, mocinhos e bandidos invertem os papéis o tempo todo, somos uma somatória de qualidades e mazelas, anjos e demonios, a instabilidade faz a vida interessante, as vezes mediocre, farta ou pobre tecendo os acontecimentos individuais, coletivos, inesperados. O cenário da existencia vai sendo urdido com ou sem consentimento nosso. Sequencia de fatos acontecem inevitavelmente, muitas vezes sem controle de nosso livre arbitrio, somos mercadoria descatável, carregamos a falsa impressão de autonomia sem perceber que caminhamos nos labirintos da alienação tecida para o controle social.
As artes plasticas, musica, cinema, literatura são valvulas de escape para a humanidade não padecer mentalmente, interpretar o universo ao seu redor, interagindo com o mesmo. O universo continua em expanção e nossa existencia é ínfima na face do planeta, fazemos parte do todo quântico indefinidamente....ando fascinado pela teoria das cordas, embora tenha sido um mediocre aluno de física no colégio. Olho o espelho do corredor vejo o menino que tardiamente deu seus primeiros passos na vida numa acanhada sala de fisioterapia. Olhava surpreso para todos, a equipe da fisio em silencio, conseguia finalmente ficar ereto e equilibrar-me sem cair assustado no chão, o menino deu seus primeiros passos após cirurgia de alongamento dos tendões de Aquiles, então sorriu, começava assim a interagir com o mundo sem medo, aprendendo a saciar a sede pela vida...Sabiás eufóricos vindos de não sei onde cantam vibrantes pelas árvores do condominio festejando a vida, de repente desaparecem...
E seguem os dias, semanas, meses, tenho uma pequena lista de livros para ler e tantos outros que deveria ter lido e não sei se vou conseguir ler. Depois de uma sequencia de livros lidos, acontece uma ressaca, passo meses sem ler nada ! Não sei explicar o motivo de estar escrevendo sobre minha vida, não vivi experencias exóticas, tenho uma
vida comum, não sei se paro e ponho um ponto final ou continuo escrevendo sobre qualquer coisa. Qualquer coisa pode significar algo interessante ou não, esse hiato que esta acontecendo é como ficar marcando passos e não sair do lugar. Escrever sobre coisas óbvias ou estranhas como as flores de maio que florescem em junho, ouvir novamente uma musica esquecida, saborear o frescor de um fruto maduro, reencontrar sem querer um rosto conhecido, beber com sede um copo de cerveja, ficar olhando o horizonte sem pensar em nada, uma consulta ao dentista, andar sem direção, olhar nos olhos da amada com desejo, ficar observando uma caneta sobre a mesa e sentir o motivo para escrever desaparecer. Escrever qualquer palavra, depois rabiscar diversas vezes, o motivo nem chega a virar embrião, escrever sobre a vida ao meu redor, retratar o cotidiano, extrair dele o que comove, o que espanta !





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