Copo cheio de sede II
O
telefone toca logo pela manhã quebrando o silencio, atendi, era
propaganda de tevê a cabo....puta merda ! Desliguei de imediato,
observando o aparelho em silencio recordo de Gilberto meu amigo
poeta. Guardo suas cartas, poemas de estrutura dialética, concisos,
revelando o conflito do homem urbano versus o homem do interior.
Poesia de timbre forte, as vezes ríspida, plasticamente elaborada.
Um
concurso de poesia no curso vestibular do qual fomos premiados nos
aproximou permitindo a amizade e o culto à literatura. Gilberto
apresentou-me Otávio Paz, Pablo Neruda e seu apreço por João
Cabral de Melo Neto, nossa amizade atravessa a distancia e o tempo.
Vencer aquele concurso me deu confiança, saber que estava no rumo
certo , trabalhar meu estilo, enfiei a cara nos livros que conseguia
comprar, emprestar, encontrei-me com diversos escritores, nessa
fase da vida minha rebeldia tornou-se intensa afastei-me do
catolicismo, da religiosidade, aproximei-me do marxismo. Paralelo a
poesia queria encontrar uma alternativa politica, compreender o país,
nossa sociedade, fui atrás de Josué de Castro, Paulo Freire, Celso
Furtado, Caio Prado Junior, Sergio Buarque de Hollanda, o cinema
novo de Glauber Rocha.... Escolhi por conta própria um caminho a
esquerda, pois acreditava que seria a alternativa para o país, o
tempo revelou o contrário.
Abandonamos
o hábito de escrever cartas para amigos e familiares com o advento
do e-mail e rede social. O telefone toca novamente, era tevê a cabo
outra vez ! Fiquei furioso.... bati o telefone, fui para a cozinha
tomar um café.
Qualquer
dia ligo para o Gilberto para conversarmos sobre a vida, coisas
comuns, a desilusão com o país, a familia, o minimalismo da
angolana Paula Tavares ou por que não consegui passar da página
duzentos de Ulisses de James Joyce abandonando o livro num canto
qualquer. Gilberto parou de escrever infelizmente, agora dedica-se
com a familia em seu pequeno comércio. As vezes rascunho um poema e
publico-o no meu blog “A tradução da palavra”, divulgo o que
escrevo para minha palavra repercurtir e atingir o leitor imaginário.
De
repente um helicóptero da polícia sobrevoa rasante o bairro fazendo
patrulha, escuta-se viaturas em velocidade pelas ruas, saio na
varanda fico a observar, outros moradores fazem o mesmo, depois tudo
cessa. Mais tarde sabe-se através da televisão sobre perseguição
policial a assaltantes de banco. O vizinho ao lado liga estridente
furadeira, o dia promete.
Antes
que o stress predomine saio e vou andar pelo condominio, depois vou
até o boteco do Paulão “point” dos aposentados para por em dia
o noticiario local. Ouvir as estórias do sorridente Sebastião, as
criticas zangadas do Chico, as brincadeiras do Paulão, veteranos
moradores do bairro, bebo devagar uma gelada e volto para almoçar.
Começa a ventar forte, trazendo o frio, nuvens cinzentas.
Vento
persistente até o anoitecer varre as nuvens espessas, expondo céu
escanradado e lua brilhando sobre o asfalto, as casas, o
condominio, a periferia. Estou a ler Ana Cristina Cesar, graças a
minha filha, estudante de letras, percorro com o olhar a estante,
meus livros permaneceram vibrantes a provocar minha criação.
Acabo com o café, aproveito até o restinho do copo, o exercício
de escrever desafia, fascina, as vezes é angustiante. Escrevo e não
basta ! Graças a minha esposa recuperamos meu velho parceiro Polivox
três em um, peguei um vinil de Vivaldi, concerto de cordas e Cello
e pus para tocar baixinho....O vento assobia pela fresta da janela
sem parar. Começa a chover , a campainha toca, minha filha chega
eufórica , depois comenta que os alunos da USP vão entrar em greve
contra as arbitrariedades do reitor e cortes de verba. A porta da
sala abre minha esposa chega molhada vai direto para o chuveiro, o
disco termina, vou para a cozinha ajudar a preparar uma mistura para
o jantar. Antes ligo o televisor, o noticiário politico esta
efervecente. A pressão popular nas ruas finalmente coloca os
politicos em cheque, o governo começa a ficar incomodado.
Meu
pai tinha o costume de me ligar depois da janta falavamos brevemente
sobre ene coisas desde mitologia grega, nórdica, a existência de
Deus, os bigodes de Nietzsche, Kardec, a musica de Wagner, politica,
ovinis, futebol, fatos corriqueiros sem concluir nada. Combinavamos o
almoço para o final de semana. A figura paterna geralmente é vista
com reservas, traumas, exemplo são “Carta a meu pai” de Kafka
ou “Pai patrão” de Gavino Ledda, a presença de meu pai na
minha vida ao contrário dos autores citados, foi marcante por sua
alegria e amizade, ressalte-se que toda familia convive com seus
problemas de relacionamento. Quando cursava o colegial, tive uma aula
sobre o mito da caverna de Platão que me deixou entusiasmado e
durante dias fiquei comentando com ele. Certo dia ele chega com um
exemplar de “A republica” de Platão, edição de 1940 que ele
encontrou num sebo. Lemos o mito da caverna na integra e depois
debatemos a alegoria criada pelo filosofo. Meu pai apesar de só
estudar até o madureza, era sedento por conhecimento e despertou em
mim o gostar de ler.
Hoje
o telefone não toca mais, fiz a mudança de minha mãe para perto de
mim após a morte de meu pai, tranquei a casa. Não sinto saudades
da casa que vivi a infancia e juventude. Minha mãe na casa dos
noventa anos, quase cega, pergunta se alguem ligou, recorda primos e
irmãos falecidos, seus contemporaneos que já não existem, todos
os dias ela me pergunta se alguem ligou, então sobressai um
silencio que incomoda...A voz do meu pai ecoa pelas escadarias da
minha memória. Sua presença esta viva representada num pé de romã
que ele me deu de presente, pedi ao jardineiro do condominio que
plantasse próximo a minha varanda, assim posso ver o pé de romã
crescendo e brevemente colher seus frutos. Deixo a luz do corredor
acessa vou para a cama com o rádio de pilha ligado baixinho, ouço
o resumo das notícias. Escuta-se ao longe motores acelerados no
rodoanel, a motocicleta do ronda passando no condominio. Negra
madrugada, é possível escutar um galo anunciando o alvorecer. Ogum
faz sua ronda.
Predominam
dias cinzentos e gélidos, agrava-se a crise política, economica no
país trazendo recessão, inflação o desemprego. O impeachment sai
das ruas e adentra no congresso nacional, os dias seguem...
A
vida nos surpreende, não existe roteiro lógico, mocinhos e bandidos
invertem os papéis o tempo todo, somos uma somatória de qualidades
e mazelas, anjos e demonios, a instabilidade faz a vida interessante,
as vezes mediocre, farta ou pobre tecendo os acontecimentos
individuais, coletivos, inesperados. O cenário da existencia vai
sendo urdido com ou sem consentimento nosso. Sequencia de fatos
acontecem inevitavelmente, muitas vezes sem controle de nosso livre
arbitrio, somos mercadoria descatável, carregamos a falsa impressão
de autonomia sem perceber que caminhamos nos labirintos da alienação
tecida para o controle social.
As
artes plasticas, musica, cinema, literatura são valvulas de escape
para a humanidade não padecer mentalmente, interpretar o universo
ao seu redor, interagindo com o mesmo. O universo continua em
expanção e nossa existencia é ínfima na face do planeta,
fazemos parte do todo quântico indefinidamente....ando fascinado
pela teoria das cordas, embora tenha sido um mediocre aluno de física
no colégio. Olho o espelho do corredor vejo o menino que
tardiamente deu seus primeiros passos na vida numa acanhada sala de
fisioterapia. Olhava surpreso para todos, a equipe da fisio em
silencio, conseguia finalmente ficar ereto e equilibrar-me sem cair
assustado no chão, o menino deu seus primeiros passos após
cirurgia de alongamento dos tendões de Aquiles, então sorriu,
começava assim a interagir com o mundo sem medo, aprendendo a
saciar a sede pela vida...Sabiás eufóricos vindos de não sei onde
cantam vibrantes pelas árvores do condominio festejando a vida, de
repente desaparecem...
E
seguem os dias, semanas, meses, tenho uma pequena lista de livros
para ler e tantos outros que deveria ter lido e não sei se vou
conseguir ler. Depois de uma sequencia de livros lidos, acontece uma
ressaca, passo meses sem ler nada ! Não sei explicar o motivo de
estar escrevendo sobre minha vida, não vivi experencias exóticas,
tenho uma
vida
comum, não sei se paro e ponho um ponto final ou continuo escrevendo
sobre qualquer coisa. Qualquer coisa pode significar algo
interessante ou não, esse hiato que esta acontecendo é como ficar
marcando passos e não sair do lugar. Escrever sobre coisas óbvias
ou estranhas como as flores de maio que florescem em junho, ouvir
novamente uma musica esquecida, saborear o frescor de um fruto
maduro, reencontrar sem querer um rosto conhecido, beber com sede um
copo de cerveja, ficar olhando o horizonte sem pensar em nada, uma
consulta ao dentista, andar sem direção, olhar nos olhos da amada
com desejo, ficar observando uma caneta sobre a mesa e sentir o
motivo para escrever desaparecer. Escrever qualquer palavra, depois
rabiscar diversas vezes, o motivo nem chega a virar embrião,
escrever sobre a vida ao meu redor, retratar o cotidiano, extrair
dele o que comove, o que espanta !
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