MOEDAS
PARA CARONTE
Ele,
Mendonça Petrarca, era um homem magro, alto, de poucas palavras,
sempre casmurro, meia idade, trabalhava no departamento das
Certidões Negativas em duplicata de Imóveis Alienados,
precisamente, encarregado do arquivo morto. Pouco se conhece sobre
seu passado, sua origem, sua fisionomia escolástica, medrava nas
pessoas aversão, usava sempre um terno marrom escuro, meias
soquetes pretas, gravata azul desbotada.
Mendonça
Petrarca, trabalhava sozinho naquele galpão caindo aos pedaços
repleto de arquivos antigos, quase não via ninguém, o chefe ligava
no inicio de cada quinzena pela manhã, as vezes recebia pacotes das
certidões para arquivar. Sentia-se soberano, todo aquele galpão
ficava sob seus cuidados, zeloso, com os arquivos enferrujando,
mantinha tudo organizado por ano, mês, logradouro, ficava horas
colando as folhas rasgadas com durex, tinha cuidados de artesão,
soberbo em sua responsabilidade, tinha mesa, cadeira e um pequeno
ventilador presente do chefe, não permitia a ingerência de ninguém,
somente seus superiores.
Era
verdadeiro cão de guarda, armava ratoeiras em lugares pesquisados
cuidadosamente, sentia enorme satisfação quando encontrava os
roedores mortos, tinha metas mensais para o extermínio dos mesmos.
Pensou em manufaturar uma máquina para torturar, multiplicar a
morte dos ratos, era seu lazer, pensar qual o melhor método, usava
muito chumbinho em rações variadas. As vezes ficava imóvel, bem
quieto só observando o roedor ser degolado pela ratoeira, Mendonça
revelava sua crueldade, seu enorme sadismo com a matança dos ratos.
Ele
sentia-se realizado na sua função, mesmo doente, arrastava-se para
não perder
o
dia, conhecia todos os arquivos mesmo aqueles que ficavam na parte
mal iluminada, em muitos fins de semana fazia reparos,
principalmente trocando telhas quebradas, pois as goteiras eram sua
grande preocupação. Mendonça ligava com antecedência para seu
chefe, que providenciava tudo para que fossem realizados os reparos
nos fins de semana, assim a rotina da semana estaria garantida. Todos
os processos tinham que estar em bom estado, carimbados e rubricados
por Mendonça.
Ele
vivia há muitos anos numa pensão antiga do centro da cidade próximo
a estação de trem, região decadente, conhecia os pontos dos
traficantes e prostitutas, ninguém o incomodava, por garantia
Mendonça andava com um potente punhal. Há anos atrás, apareciam ao
amanhecer pessoas assassinadas, todas envolvidas com a contravenção,
cirurgicamente mortas, a polícia investigou os casos, mas não houve
muito interesse em resolver pois os assassinados tinham longa ficha
policial. Naquela época os militares estavam no poder então certas
coisas passavam desapercebidas, amordaçadas.
Mendonça
Petrarca, era homem temido, antes de estar como Encarregado do
arquivo morto, fora policial do DOPS, aparecia quando o delegado o
convocava, sabia de muita coisa e participou de tantas outras, tomava
cuidado para não deixar rastro. Era estimado pelos graduados, ajudou
a desenvolver a “cadeira de dragão”, máquina de tortura que
traumatizou para sempre muita gente. Nos dias de folga, ia até o
IML, nos plantões do doutor Rodolfo, o conhecera numa “ocorrência”,
tornaram-se amigos, gostava de assistir o doutor trabalhar,
acompanhava tudo com muita curiosidade, admirava a destreza do médico
com o bisturi, logo ele dizia como e o porque das mortes violentas,
ou súbitas. Não ficava impressionado, nem passava mal ao ver os
cadáveres, nem sempre inteiros, ou em adiantado estado de
decomposição. Aprendeu muito sobre a anatomia humana.
Como premio aos bons serviços prestados, ele foi nomeado como
encarregado municipal, além de sua aposentadoria de policial.
Acomodaram a situação para Mendonça antes mesmo dos generais
deixarem o poder, antes da lei da anistia, para ninguém querer
levantar as sombras do passado, assim foi parar no Departamento das
Certidões negativas em duplicatas de Imóveis Alienados. No inicio
estranhou bastante, mas com o tempo entendeu que precisava ficar
esquecido em algum lugar insignificante.
Sua
mente adestrada não admitia nada fora da rotina, metódico, ao andar
pelos corredores do galpão logo percebia qualquer diferença,
localizava as fezes dos ratos e então armava as ratoeiras, as novas
goteiras depois de uma noite de chuva, eram anotadas por corredor
para depois solicitar material de reparo para o chefe, só deixava as
teias de aranha, pois gostava dos desenhos que elas produziam, assim
realizava sua função com satisfação sádica, como obediente
cão de guarda.
Ele
respeitava e temia a religião, por influencia familiar, e quando
mancebo leu o Inferno de Dante, única obra incompleta importante
que leu na vida e desde então sentia pavor ao lembrar das
descrições medonhas do umbral, as vezes tinha pesadelos e via-se
junto com os condenados sendo açoitado pelos demônios. Acordava
apavorado. Guardava esse pânico secretamente, não deixava de ir a
igreja na semana santa, para tentar aliviar sua consciência,
diminuir suas penas depois dessa vida. Mas tudo que fez foi ordem
superior, o país estava uma baderna ! Sem ordem, disciplina, tudo
vira anarquia!...Alguém precisa agir ! Contra os comunistas !
Sua
vida amorosa ficou restrita a um caso que teve com uma enfermeira,
Verônica, trabalhava no pronto socorro, plantonista, conheceram-se
quando ele estava no DOPS, ela lhe passava psicotrópicos. Ela
conseguiu gostar do Mendonça, engravidou, mas teve complicações no
parto e faleceu, a criança nasceu morta. Nunca mais teve um
relacionamento sério, só saia com prostitutas, as vezes as surrava
por puro prazer, algumas vezes foi parar na delegacia mas nunca seu
nome apareceu em um boletim de ocorrência, saia sempre limpo.
Mendonça
Petrarca, levava sua vida anônima, medíocre, da pensão para o
galpão, fazendo estatísticas da matança de ratos, a quantidade de
telhas repostas para o chefe. Numa sexta-feira ficou até mais
tarde , carimbando os processos, saiu tarde da noite, as ruas eram
mal iluminadas, poucas casas, havia um trecho deserto, escuro, para
percorrer. Seguia tranquilo, quando uma brasília de repente passa
correndo aproximando-se dele e uma voz lá de dentro grita: seu filho
da puta !
Lembra
de mim ! apontando um trinta e oito e descarrega as balas em seu
peito e cabeça. Não houve tempo de reação, o corpo de Mendonça
ficou estirado na calçada, esguichando sangue. Eis que Mendonça
Petrarca foi ao derradeiro encontro com Caronte, prezado leitor...
25/02/2011
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