quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

MOEDAS PARA CARONTE

Ele, Mendonça Petrarca, era um homem magro, alto, de poucas palavras, sempre casmurro, meia idade, trabalhava no departamento das Certidões Negativas em duplicata de Imóveis Alienados, precisamente, encarregado do arquivo morto. Pouco se conhece sobre seu passado, sua origem, sua fisionomia escolástica, medrava nas pessoas aversão, usava sempre um terno marrom escuro, meias soquetes pretas, gravata azul desbotada.
Mendonça Petrarca, trabalhava sozinho naquele galpão caindo aos pedaços repleto de arquivos antigos, quase não via ninguém, o chefe ligava no inicio de cada quinzena pela manhã, as vezes recebia pacotes das certidões para arquivar. Sentia-se soberano, todo aquele galpão ficava sob seus cuidados, zeloso, com os arquivos enferrujando, mantinha tudo organizado por ano, mês, logradouro, ficava horas colando as folhas rasgadas com durex, tinha cuidados de artesão, soberbo em sua responsabilidade, tinha mesa, cadeira e um pequeno ventilador presente do chefe, não permitia a ingerência de ninguém, somente seus superiores.
Era verdadeiro cão de guarda, armava ratoeiras em lugares pesquisados cuidadosamente, sentia enorme satisfação quando encontrava os roedores mortos, tinha metas mensais para o extermínio dos mesmos. Pensou em manufaturar uma máquina para torturar, multiplicar a morte dos ratos, era seu lazer, pensar qual o melhor método, usava muito chumbinho em rações variadas. As vezes ficava imóvel, bem quieto só observando o roedor ser degolado pela ratoeira, Mendonça revelava sua crueldade, seu enorme sadismo com a matança dos ratos.
Ele sentia-se realizado na sua função, mesmo doente, arrastava-se para não perder
o dia, conhecia todos os arquivos mesmo aqueles que ficavam na parte mal iluminada, em muitos fins de semana fazia reparos, principalmente trocando telhas quebradas, pois as goteiras eram sua grande preocupação. Mendonça ligava com antecedência para seu chefe, que providenciava tudo para que fossem realizados os reparos nos fins de semana, assim a rotina da semana estaria garantida. Todos os processos tinham que estar em bom estado, carimbados e rubricados por Mendonça.
Ele vivia há muitos anos numa pensão antiga do centro da cidade próximo a estação de trem, região decadente, conhecia os pontos dos traficantes e prostitutas, ninguém o incomodava, por garantia Mendonça andava com um potente punhal. Há anos atrás, apareciam ao amanhecer pessoas assassinadas, todas envolvidas com a contravenção, cirurgicamente mortas, a polícia investigou os casos, mas não houve muito interesse em resolver pois os assassinados tinham longa ficha policial. Naquela época os militares estavam no poder então certas coisas passavam desapercebidas, amordaçadas.
Mendonça Petrarca, era homem temido, antes de estar como Encarregado do arquivo morto, fora policial do DOPS, aparecia quando o delegado o convocava, sabia de muita coisa e participou de tantas outras, tomava cuidado para não deixar rastro. Era estimado pelos graduados, ajudou a desenvolver a “cadeira de dragão”, máquina de tortura que traumatizou para sempre muita gente. Nos dias de folga, ia até o IML, nos plantões do doutor Rodolfo, o conhecera numa “ocorrência”, tornaram-se amigos, gostava de assistir o doutor trabalhar, acompanhava tudo com muita curiosidade, admirava a destreza do médico com o bisturi, logo ele dizia como e o porque das mortes violentas, ou súbitas. Não ficava impressionado, nem passava mal ao ver os cadáveres, nem sempre inteiros, ou em adiantado estado de decomposição. Aprendeu muito sobre a anatomia humana.
Como premio aos bons serviços prestados, ele foi nomeado como encarregado municipal, além de sua aposentadoria de policial. Acomodaram a situação para Mendonça antes mesmo dos generais deixarem o poder, antes da lei da anistia, para ninguém querer levantar as sombras do passado, assim foi parar no Departamento das Certidões negativas em duplicatas de Imóveis Alienados. No inicio estranhou bastante, mas com o tempo entendeu que precisava ficar esquecido em algum lugar insignificante.
Sua mente adestrada não admitia nada fora da rotina, metódico, ao andar pelos corredores do galpão logo percebia qualquer diferença, localizava as fezes dos ratos e então armava as ratoeiras, as novas goteiras depois de uma noite de chuva, eram anotadas por corredor para depois solicitar material de reparo para o chefe, só deixava as teias de aranha, pois gostava dos desenhos que elas produziam, assim realizava sua função com satisfação sádica, como obediente cão de guarda.
Ele respeitava e temia a religião, por influencia familiar, e quando mancebo leu o Inferno de Dante, única obra incompleta importante que leu na vida e desde então sentia pavor ao lembrar das descrições medonhas do umbral, as vezes tinha pesadelos e via-se junto com os condenados sendo açoitado pelos demônios. Acordava apavorado. Guardava esse pânico secretamente, não deixava de ir a igreja na semana santa, para tentar aliviar sua consciência, diminuir suas penas depois dessa vida. Mas tudo que fez foi ordem superior, o país estava uma baderna ! Sem ordem, disciplina, tudo vira anarquia!...Alguém precisa agir ! Contra os comunistas !
Sua vida amorosa ficou restrita a um caso que teve com uma enfermeira, Verônica, trabalhava no pronto socorro, plantonista, conheceram-se quando ele estava no DOPS, ela lhe passava psicotrópicos. Ela conseguiu gostar do Mendonça, engravidou, mas teve complicações no parto e faleceu, a criança nasceu morta. Nunca mais teve um relacionamento sério, só saia com prostitutas, as vezes as surrava por puro prazer, algumas vezes foi parar na delegacia mas nunca seu nome apareceu em um boletim de ocorrência, saia sempre limpo.
Mendonça Petrarca, levava sua vida anônima, medíocre, da pensão para o galpão, fazendo estatísticas da matança de ratos, a quantidade de telhas repostas para o chefe. Numa sexta-feira ficou até mais tarde , carimbando os processos, saiu tarde da noite, as ruas eram mal iluminadas, poucas casas, havia um trecho deserto, escuro, para percorrer. Seguia tranquilo, quando uma brasília de repente passa correndo aproximando-se dele e uma voz lá de dentro grita: seu filho da puta !
Lembra de mim ! apontando um trinta e oito e descarrega as balas em seu peito e cabeça. Não houve tempo de reação, o corpo de Mendonça ficou estirado na calçada, esguichando sangue. Eis que Mendonça Petrarca foi ao derradeiro encontro com Caronte, prezado leitor...

25/02/2011



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