REI
DE PAUS
Todo
final de tarde quando havia sol, ela ficava na janela observando o
firmamento, a composição das nuvens, o efeito dos raios de sol,
deixando alaranjada toda a paisagem urbana. Seus olhos ficavam fixos
em um ponto como que buscando ver o que os olhos não podem alcançar.
Encosta-se a parede observando o firmamento até surgirem as
primeiras estrelas, o movimento dos carros, o brilho vermelho das
lanternas, o congestionado anárquico, não a incomodavam, só olha
para o espaço como se estivesse saudosa do impossível.
Ela
tinha na parede da sala acima do sofá dezenas de pequenos quadros
com fotografias dos familiares, paisagens, flores simplórias,
recordações quase perdidas, a maioria das fotos eram em preto e
branco, somatória de uma existência.
Seus
olhos revivendo as cenas do passado, às vezes parecia ouvir vozes
familiares, amigos ausentes, até músicas que nunca mais ouviu.
Lembra ternamente dos almoços de domingo quando tios, primos, os
filhos ainda crianças ficavam reunidos A velocidade do tempo
devorando os momentos felizes é implacável, agora restavam
recordações guardadas como numa revista antiga.
A
televisão ligada vai desnudando os fatos, imagens da cidade,
cotidiano de risos e lágrimas, Cibele ao mesmo tempo que pensava o
que preparar para a chegada das meninas, ouvia atenta o
apresentador da TV. Os cabelos castanhos crisalhos escovados, os
olhos amendoados e brilhantes, ainda guardavam a beleza da mulher
atraente que fora na juventude. Guerra no Oriente médio, terremotos
na Asia, o perigo de uma epidemia de dengue, denuncias de corrupção,
os gols do sábado, serviços públicos mal administrados, era o
resumo do jornal diário.
Pensava
na maldade que corria solta no meio da humanidade, tantas injustiças,
o país perdendo sempre para a roubalheira, essa maledetta razza ! Um
dia vão prestar contas no inferno, no inferno ! Pusemos um operário
em Brasília, e ficou tudo na mesma ! Os amigos, os “companheiros”
mamando nas tetas do governo, as custas do povo! maledettos! Mas,
Deus nos livre, ditadura nunca mais ! Assim Cibele extravasava seu
desencanto diante do televisor. De repente o telefone toca, era
Carminda, dizendo que estava chegando para jogar buraco, a Judite e a
Clarinha, estavam trazendo o vinho, providencia-se as pizzas.
Não
demorou meia hora chegaram falantes, a pizza chegou junto, Carminda
chegou com a língua afiada querendo saber da vida de fulano e
sicrano, Clarinha só escutava, Judite aumentou o volume da televisão
e imperativa mandou Carminda fechar a boca, queria ouvir a novela da
cozinha, depois da pizza, ia começar a jogatina ! Carminda ficou
emburrada com Judite achou um resto de cinzano no barzinho, e foi
logo afogando seus azedumes. Cibele achava graça, essas três, desde
o colégio não crescem ! A pizza aquecida no forno já cheirava
por toda a casa... Televisão desligada e somente ouve-se as canções
de Roberto Carlos embalando aqueles corações carentes.
Risadas,
provocações e vinho, as quatro reunidas na mesa, começavam pelas
coisas corriqueiras, banalidades do dia-a dia, de repente alguém
levantava algum defunto esquecido e então começava a sessão de
provocações . Duas garrafas de vinho vazias, quatro mulheres
reunidas com amarguras e sentimentos reprimidos , uma noite nunca
foi suficiente para abrigar tantos imbróglios e desabafos dessas
mulheres, comungando seu sabbath semanal sem caldeirão sem magia,
sem presença masculina, mas motivado por ela.
Tiravam
no par ou impar as parcerias, caneta e papel para as anotações, e
outra garrafa de vinho na geladeira. A noite e´uma criança ! Dizia
Judite. As cartas começavam a rodar na mesa. Com pequenos sinas
faciais Cibele e Clarinha comunicavam-se, já Carminda e Judite
tinham ótima habilidade com as mãos.
Cibele
sempre foi como a irmã mais velha de todas, quando tinham qualquer
dúvida ou problema recorriam a Cibele, a mais lúcida e equilibrada
entre elas. Estava estudando astrologia e quiromancia, aprendendo a
fazer velas aromáticas, parecia uma cigana, ia ler e saber o
destino de todas, Clarinha era tímida, sentimental, vivia lendo
livros, agora não desgrudava de uma tal Helena Blavatsky nem sabe
dizer como apareceu aquele livro na sua mão, precisava sempre da
companhia das amigas. Carminda explodia em extroversão, rodava a
baiana por qualquer coisa, adorava vender produtos de beleza, era a
mulher do Avon. Judite não ficava atrás, gostava de aprender novas
receitas, fazia salgadinhos para festas e casamentos, sua fama já
extrapolava o bairro, autoritária sempre apimentando uma conversa.
Todas tinham uma coisa em comum estavam na menopausa, filhos criados.
Viuvez e divórcio, era a situação civil naquela mesa. A amizade
entre elas era marca registrada, em vários momentos uniam-se na
alegria e na tristeza e nas vitórias do Corinthians, as quatro
programavam as idas para o Pacaembu para torcer pelo alvinegro,
conheciam tudo de futebol.
O
jogo na mesa, Cibele e Clarinha lideravam a pontuação, os coringas
pareciam procurar as duas, Carminda olhava desconfiada para as
adversárias. As vezes olhava debaixo da mesa. Dizia que era preciso
ficar de olho aberto na esperteza da Clarinha,que toda hora fazia
canastra e logo batia, pegando elas de mão cheia. A segunda garrafa
de vinho já estava no fim...
Um
rei de paus, só faltava ele para uma canastra limpa e começar a
virada na pontuação Judite ansiosa mentalizava a carta como que
atraindo com um imã a carta para suas mãos, varias rodadas e nada,
o outro rei estava morto no joguinho de trinca baixado por Cibele e
Clarinha. Somente quando pegaram o morto, Carminda aliviada baixou o
rei de paus e finalmente canastra real ! Logo deram um jeito de
descarregar todas as cartas e bateram para iniciar a virada na
pontuação. Todo momento importante do jogo para ambos os lados
coincidentemente a carta do rei de paus muda a história do jogo.
Carminda
foi a primeira a abrir o perigoso arquivo sentimental, expondo
feridas mal curadas do passado. Lembrando sempre com amargura da
relação difícil com o ex-marido. Sentimentos partidos subiram a
tona, o casamento foi deteriorando com o passar dos anos, traições,
relacionamento agressivo, até chegar a agressão física. Os
homens são uns canalhas ! Galinhas ! Tudo foi estressante até o
divórcio, depois veio a libertação, agora ela vivia a vida ! e
tomou um longo gole de vinho. Todas tiveram relacionamentos
complicados no casamento, mesmo as viúvas Clarinha e Cibele.
Judite
foi tirando do arquivo fragmentos de uma relação tortuosa,
mentiras, traições de ambas as partes, até o divorcio. Dizia de
boca cheia que com outros homens sentiu realmente sua sexualidade
vibrar, com o ex-marido tudo era frustração, dissimulação
diária.
Mas
de repente o clima pesado, transforma-se com uma grande gargalhada de
todas, pois, agora estavam livres de relacionamentos torturantes,
podiam fazer o que lhes viesse a cabeça e não precisavam mais dar
satisfação para nenhum machão egoísta. Levantaram os copos com
vinho e brindam a Baco. Baco e Roberto Carlos eram as únicas
personalidades masculinas aceitas por elas em sua reunião semanal.
O
jogo termina, Cibele prepara acomodações para todas dormirem na
casa, pois, ninguém ali estava em condições de dirigir com a
quantidade de vinho consumido. Durante o sono de todas, sonham estar
em luxuoso quarto de motel, com lingeries de renda preta e cinta
liga, a espera do amante charmoso, elegante, vestido de rei de paus,
seduzindo e amando a todas intensamente, satisfazendo suas secretas
fantasias, refazendo quando necessário, pequena tatuagem de henna,
o naipe de paus delicadamente desenhado no ombro de cada uma. Pela
manhã acordam sem fazer comentários, trocando olhares saciados e
cúmplices, tomam café e logo depois o grupo separa-se, para novo
encontro no sábado seguinte, sempre sob a regência de Cibele, a
guardiã de todas.
13/03/2011
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