quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

REI DE PAUS



Todo final de tarde quando havia sol, ela ficava na janela observando o firmamento, a composição das nuvens, o efeito dos raios de sol, deixando alaranjada toda a paisagem urbana. Seus olhos ficavam fixos em um ponto como que buscando ver o que os olhos não podem alcançar. Encosta-se a parede observando o firmamento até surgirem as primeiras estrelas, o movimento dos carros, o brilho vermelho das lanternas, o congestionado anárquico, não a incomodavam, só olha para o espaço como se estivesse saudosa do impossível.
Ela tinha na parede da sala acima do sofá dezenas de pequenos quadros com fotografias dos familiares, paisagens, flores simplórias, recordações quase perdidas, a maioria das fotos eram em preto e branco, somatória de uma existência.
Seus olhos revivendo as cenas do passado, às vezes parecia ouvir vozes familiares, amigos ausentes, até músicas que nunca mais ouviu. Lembra ternamente dos almoços de domingo quando tios, primos, os filhos ainda crianças ficavam reunidos A velocidade do tempo devorando os momentos felizes é implacável, agora restavam recordações guardadas como numa revista antiga.
A televisão ligada vai desnudando os fatos, imagens da cidade, cotidiano de risos e lágrimas, Cibele ao mesmo tempo que pensava o que preparar para a chegada das meninas, ouvia atenta o apresentador da TV. Os cabelos castanhos crisalhos escovados, os olhos amendoados e brilhantes, ainda guardavam a beleza da mulher atraente que fora na juventude. Guerra no Oriente médio, terremotos na Asia, o perigo de uma epidemia de dengue, denuncias de corrupção, os gols do sábado, serviços públicos mal administrados, era o resumo do jornal diário.
Pensava na maldade que corria solta no meio da humanidade, tantas injustiças, o país perdendo sempre para a roubalheira, essa maledetta razza ! Um dia vão prestar contas no inferno, no inferno ! Pusemos um operário em Brasília, e ficou tudo na mesma ! Os amigos, os “companheiros” mamando nas tetas do governo, as custas do povo! maledettos! Mas, Deus nos livre, ditadura nunca mais ! Assim Cibele extravasava seu desencanto diante do televisor. De repente o telefone toca, era Carminda, dizendo que estava chegando para jogar buraco, a Judite e a Clarinha, estavam trazendo o vinho, providencia-se as pizzas.
Não demorou meia hora chegaram falantes, a pizza chegou junto, Carminda chegou com a língua afiada querendo saber da vida de fulano e sicrano, Clarinha só escutava, Judite aumentou o volume da televisão e imperativa mandou Carminda fechar a boca, queria ouvir a novela da cozinha, depois da pizza, ia começar a jogatina ! Carminda ficou emburrada com Judite achou um resto de cinzano no barzinho, e foi logo afogando seus azedumes. Cibele achava graça, essas três, desde o colégio não crescem ! A pizza aquecida no forno já cheirava por toda a casa... Televisão desligada e somente ouve-se as canções de Roberto Carlos embalando aqueles corações carentes.
Risadas, provocações e vinho, as quatro reunidas na mesa, começavam pelas coisas corriqueiras, banalidades do dia-a dia, de repente alguém levantava algum defunto esquecido e então começava a sessão de provocações . Duas garrafas de vinho vazias, quatro mulheres reunidas com amarguras e sentimentos reprimidos , uma noite nunca foi suficiente para abrigar tantos imbróglios e desabafos dessas mulheres, comungando seu sabbath semanal sem caldeirão sem magia, sem presença masculina, mas motivado por ela.
Tiravam no par ou impar as parcerias, caneta e papel para as anotações, e outra garrafa de vinho na geladeira. A noite e´uma criança ! Dizia Judite. As cartas começavam a rodar na mesa. Com pequenos sinas faciais Cibele e Clarinha comunicavam-se, já Carminda e Judite tinham ótima habilidade com as mãos.
Cibele sempre foi como a irmã mais velha de todas, quando tinham qualquer dúvida ou problema recorriam a Cibele, a mais lúcida e equilibrada entre elas. Estava estudando astrologia e quiromancia, aprendendo a fazer velas aromáticas, parecia uma cigana, ia ler e saber o destino de todas, Clarinha era tímida, sentimental, vivia lendo livros, agora não desgrudava de uma tal Helena Blavatsky nem sabe dizer como apareceu aquele livro na sua mão, precisava sempre da companhia das amigas. Carminda explodia em extroversão, rodava a baiana por qualquer coisa, adorava vender produtos de beleza, era a mulher do Avon. Judite não ficava atrás, gostava de aprender novas receitas, fazia salgadinhos para festas e casamentos, sua fama já extrapolava o bairro, autoritária sempre apimentando uma conversa. Todas tinham uma coisa em comum estavam na menopausa, filhos criados. Viuvez e divórcio, era a situação civil naquela mesa. A amizade entre elas era marca registrada, em vários momentos uniam-se na alegria e na tristeza e nas vitórias do Corinthians, as quatro programavam as idas para o Pacaembu para torcer pelo alvinegro, conheciam tudo de futebol.
O jogo na mesa, Cibele e Clarinha lideravam a pontuação, os coringas pareciam procurar as duas, Carminda olhava desconfiada para as adversárias. As vezes olhava debaixo da mesa. Dizia que era preciso ficar de olho aberto na esperteza da Clarinha,que toda hora fazia canastra e logo batia, pegando elas de mão cheia. A segunda garrafa de vinho já estava no fim...
Um rei de paus, só faltava ele para uma canastra limpa e começar a virada na pontuação Judite ansiosa mentalizava a carta como que atraindo com um imã a carta para suas mãos, varias rodadas e nada, o outro rei estava morto no joguinho de trinca baixado por Cibele e Clarinha. Somente quando pegaram o morto, Carminda aliviada baixou o rei de paus e finalmente canastra real ! Logo deram um jeito de descarregar todas as cartas e bateram para iniciar a virada na pontuação. Todo momento importante do jogo para ambos os lados coincidentemente a carta do rei de paus muda a história do jogo.
Carminda foi a primeira a abrir o perigoso arquivo sentimental, expondo feridas mal curadas do passado. Lembrando sempre com amargura da relação difícil com o ex-marido. Sentimentos partidos subiram a tona, o casamento foi deteriorando com o passar dos anos, traições, relacionamento agressivo, até chegar a agressão física. Os homens são uns canalhas ! Galinhas ! Tudo foi estressante até o divórcio, depois veio a libertação, agora ela vivia a vida ! e tomou um longo gole de vinho. Todas tiveram relacionamentos complicados no casamento, mesmo as viúvas Clarinha e Cibele.
Judite foi tirando do arquivo fragmentos de uma relação tortuosa, mentiras, traições de ambas as partes, até o divorcio. Dizia de boca cheia que com outros homens sentiu realmente sua sexualidade vibrar, com o ex-marido tudo era frustração, dissimulação diária.
Mas de repente o clima pesado, transforma-se com uma grande gargalhada de todas, pois, agora estavam livres de relacionamentos torturantes, podiam fazer o que lhes viesse a cabeça e não precisavam mais dar satisfação para nenhum machão egoísta. Levantaram os copos com vinho e brindam a Baco. Baco e Roberto Carlos eram as únicas personalidades masculinas aceitas por elas em sua reunião semanal.
O jogo termina, Cibele prepara acomodações para todas dormirem na casa, pois, ninguém ali estava em condições de dirigir com a quantidade de vinho consumido. Durante o sono de todas, sonham estar em luxuoso quarto de motel, com lingeries de renda preta e cinta liga, a espera do amante charmoso, elegante, vestido de rei de paus, seduzindo e amando a todas intensamente, satisfazendo suas secretas fantasias, refazendo quando necessário, pequena tatuagem de henna, o naipe de paus delicadamente desenhado no ombro de cada uma. Pela manhã acordam sem fazer comentários, trocando olhares saciados e cúmplices, tomam café e logo depois o grupo separa-se, para novo encontro no sábado seguinte, sempre sob a regência de Cibele, a guardiã de todas.

13/03/2011


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