ARTE
FINAL
Dentro
da tarde um azul denso engolia os pensamentos fragmentados e frases
incompletas. A emoção encolhida fixava o olhar na paisagem gasta do
quadro pendurado na parede da sala. Os minutos, a hora pareciam
passar mais lentos, setembro ia findando sua oferta e imaginar com a
primavera a floração de hibiscos e quaresmeiras pelas ruas
desalinhadas e pobres do bairro. Satisfazendo o olhar, o desejo por
harmonia e cor persistentes em suas entranhas, resultando numa
leveza confortável espalhada por todos os cômodos da casa.
Na
mente o vai-e-vem de lembranças quase perdidas resiste, abre
arquivos que deveriam permanecer fechados. Um sentimento de
amargura, temor, nostalgia, acabam predominando enquanto as
primeiras estrelas despontavam na abóboda.
Emoção
e razão entrelaçados, movimento escuro que excita o corpo, lá fora
a vida segue seu ritual anárquico, a fome de amor que devora a
cidade, a angustia que consome os passos apressados, criando a cada
dia novas cicatrizes em seus habitantes. Eurípedes levanta do sofá
e vai até a varanda observar o desabar alaranjado do entardecer.
Eurípedes
Silva e Silva, funcionário público aposentado, observa da varanda
o
movimento noturno, enquanto seus pensamentos mergulham nas emoções
cotidianas e logo uma frase surge rebelada, por teimosia,
insistência, por que a vida não basta, então escreve, amante das
artes plásticas passa as mãos nos cabelos
grisalhos,
no rosto, procura com o olhar uma válvula de escape em seus livros
amontoados, mas debocha de si mesmo, por mais que considere alcançar
estabilidade emocional, nessa altura da vida, o encontro com o
espanto promove um motivo, um rascunho de poesia que remove a
estabilidade, incendeia tudo, e então surge caudaloso desejo para
criar, mover cores, sentir a emoção bruta e ver
surgir
o rascunho de um poema, e de repente sem hesitação rabisca-lo e
ver nascer outra coisa. Guarda manuscritos, pintou vários quadros,
preserva suas preferencias literárias, teorias, ideologia, manias,
é irreverente, orgulhoso, irônico mas sempre generoso para com as
ideias novas, um dia foi militante marxista depois existencialista,
anarquista de botequim, ultimamente dedica-se aos torneios de dominó
aos domingos, as vezes sente vontade de por fogo em tudo e fim.
Estava mais para fundar um bloco de carnaval e sair cantando e
sambando pelas ruas : mamãe eu quero, mamãe eu quero... o bloco
da esculhambação geral !
Deixando
de lado seus embates particulares com o mundo das letras, da
filosofia, sem esquecer da politica nacional. Depois da abertura do
regime, alimentou expectativa alta com a democracia, mas ainda
gatinhamos, desiludiu-se com os descaminhos do que um dia foi o
partido de esquerda que ajudou a fundar na cidade então acomodou
seus desejos, a classe operária caminha sem direção, os conceitos
necessitam metamorfose, por enquanto tudo esta como os banqueiros e
o diabo gostam !
Eurípedes
não quer mais transformar o mundo, seu sentir o mundo modificou-se,
entretanto a esperança teimosamente respira com ele, então sorri
desdenhando. Quem sabe o quê iremos viver pela frente ? Por ser
sincero e defender seus princípios arrumou inimizades, mas diz alto
e em bom som: Antes só, do que rodeado de lacraias !
O
melhor de tudo agora é aguardar o inicio das férias escolares e
receber seu
neto,
Danielzinho, menino ativo, inteligente, magrinho, bom de bola,
valente, quer
descobrir
a vida, não se dá por vencido, são dias inesgotáveis, seus
olhos brilham de contentamento, colhendo pitanga e goiabas no quintal
para o menino e soltar pipa com o neto no campinho, olhando de longe
parecem dois irmãos, fascinados empinando pipa até o sol cair atrás
dos morros.
07/12/2011
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