sábado, 8 de fevereiro de 2014

ARTE FINAL


Dentro da tarde um azul denso engolia os pensamentos fragmentados e frases incompletas. A emoção encolhida fixava o olhar na paisagem gasta do quadro pendurado na parede da sala. Os minutos, a hora pareciam passar mais lentos, setembro ia findando sua oferta e imaginar com a primavera a floração de hibiscos e quaresmeiras pelas ruas desalinhadas e pobres do bairro. Satisfazendo o olhar, o desejo por harmonia e cor persistentes em suas entranhas, resultando numa leveza confortável espalhada por todos os cômodos da casa.
Na mente o vai-e-vem de lembranças quase perdidas resiste, abre arquivos que deveriam permanecer fechados. Um sentimento de amargura, temor, nostalgia, acabam predominando enquanto as primeiras estrelas despontavam na abóboda.
Emoção e razão entrelaçados, movimento escuro que excita o corpo, lá fora a vida segue seu ritual anárquico, a fome de amor que devora a cidade, a angustia que consome os passos apressados, criando a cada dia novas cicatrizes em seus habitantes. Eurípedes levanta do sofá e vai até a varanda observar o desabar alaranjado do entardecer.
Eurípedes Silva e Silva, funcionário público aposentado, observa da varanda
o movimento noturno, enquanto seus pensamentos mergulham nas emoções cotidianas e logo uma frase surge rebelada, por teimosia, insistência, por que a vida não basta, então escreve, amante das artes plásticas passa as mãos nos cabelos
grisalhos, no rosto, procura com o olhar uma válvula de escape em seus livros amontoados, mas debocha de si mesmo, por mais que considere alcançar estabilidade emocional, nessa altura da vida, o encontro com o espanto promove um motivo, um rascunho de poesia que remove a estabilidade, incendeia tudo, e então surge caudaloso desejo para criar, mover cores, sentir a emoção bruta e ver
surgir o rascunho de um poema, e de repente sem hesitação rabisca-lo e ver nascer outra coisa. Guarda manuscritos, pintou vários quadros, preserva suas preferencias literárias, teorias, ideologia, manias, é irreverente, orgulhoso, irônico mas sempre generoso para com as ideias novas, um dia foi militante marxista depois existencialista, anarquista de botequim, ultimamente dedica-se aos torneios de dominó aos domingos, as vezes sente vontade de por fogo em tudo e fim. Estava mais para fundar um bloco de carnaval e sair cantando e sambando pelas ruas : mamãe eu quero, mamãe eu quero... o bloco da esculhambação geral !
Deixando de lado seus embates particulares com o mundo das letras, da filosofia, sem esquecer da politica nacional. Depois da abertura do regime, alimentou expectativa alta com a democracia, mas ainda gatinhamos, desiludiu-se com os descaminhos do que um dia foi o partido de esquerda que ajudou a fundar na cidade então acomodou seus desejos, a classe operária caminha sem direção, os conceitos necessitam metamorfose, por enquanto tudo esta como os banqueiros e o diabo gostam !
Eurípedes não quer mais transformar o mundo, seu sentir o mundo modificou-se, entretanto a esperança teimosamente respira com ele, então sorri desdenhando. Quem sabe o quê iremos viver pela frente ? Por ser sincero e defender seus princípios arrumou inimizades, mas diz alto e em bom som: Antes só, do que rodeado de lacraias !
O melhor de tudo agora é aguardar o inicio das férias escolares e receber seu
neto, Danielzinho, menino ativo, inteligente, magrinho, bom de bola, valente, quer
descobrir a vida, não se dá por vencido, são dias inesgotáveis, seus olhos brilham de contentamento, colhendo pitanga e goiabas no quintal para o menino e soltar pipa com o neto no campinho, olhando de longe parecem dois irmãos, fascinados empinando pipa até o sol cair atrás dos morros.

07/12/2011

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