sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

 QUANDO ACORDOU NAQUELA MANHÃ


Noite seca absorvendo o brilho lunar refletido no chão da cozinha, negror de mil tentáculos abraçando a madrugada. Os olhos observam do vitro, lua a boiar grávida no espaço, as palavras adormecidas permanecem trancadas no deserto do inconsciente.
Sentimento e desejo triturados desnudam toda a ilusão do amanhecer sem amarguras e sal. A sensação do tempo corroído libera no meio do negror noturno sensação de torpor e solidão, imagens do cotidiano desfilando a frente dos olhos.
Arquitetura das tragédias humanas roendo as entranhas de Deus, noite dentro da noite, volume invisível pesando o sobre o corpo. A cidade, as horas, eternidade até virar a folha do calendário, lua baça, corpo suado, incansável alfabeto que mutante não cessa de nascer e morrer dentro do corpo.
Negror sem forma, sem limites, andar as cegas pela casa, a tatear a ilusão, doce esfarelar da quimera bêbada que entorpece a realidade. Lá fora a vida arrancada das entranhas da própria vida espera voraz. Pneus velozes alertam que a realidade é desperta e aguarda faminta, não importando a desordem e selvagens palavras a traduzir a existência.
Jornada cotidiana e veredas de concreto e sal, consumindo os livros que nunca escreveremos, sobram lúdicas impressões, falsas afirmações sobre o que nosso pensamento oferece : comunhão e dor pelas ruas, avenidas, onde crescemos e aprendemos a geografia das palavras a tecer o micro cosmos que construímos.
Próximo dos trinta anos, estatura comum, esquálido, barba rala, unhas roídas , olhos pequenos e fundos sempre mirando o chão. Avesso a ousadias, meticuloso em sua couraça tímida, sabia ocultar a avareza, covardia, orgulho, personalidade deletéria. Gérson adquiriu apego obsessivo a objetos pessoais e domésticos, nada podia mudar de lugar em sua casa desde a morte de sua mãe. A mesa de mogno, as cadeiras estofadas, porta-retratos, quadros, móveis, cortinas de renda portuguesa, toalhinhas de crochê e sua coleção de canetas, tudo intocável desse modo sentia-se seguro, confortável. Envolvera-se com uma garçonete mulher madura com ela desenvolveu sua sensualidade, pode sentir prazeres obscenos que antes permeavam seu imaginário, conviveram por meses mas o relacionamento neurótico promovia acirradas discussões, brigas, o que determinou o findar do convívio. Nunca mais envolveu-se com outra mulher, Gérson, resoluto dizia para si : sei que devo ser teimoso em ir, o calendário sempre será descartável, o vento no rosto é o que importa, devo ir,... não tenho outra escolha e vou.... Noite a dentro diluído na realidade ele ansiava seguir sua escolha, diante da realidade crua, vivendo desgastada, amarrotada rotina. Submerso no negror noturno sente-se cego, cego por um amor que nunca sentiu verdadeiramente, sobe pela garganta angustia pulsante...os sons da cidade, todo o sal e ferrugem consumindo suas células, relutância pela vida, sem a noção das horas, pela primeira vez decidiu tomar uma atitude: Partir e não olhar para trás! .... Alvorada alaranjada a consumir o escuro da boca !
Gérson corroído pela solidão, percorre o oceano dos pensamentos, as arestas da paisagem urbana procurando o brilho sincero dos olhares anônimos passando ao seu lado, implacável verdade de estarmos sós quando andamos na multidão. Assim as horas foram devoradas em seu pensamento, travessia ácida na madrugada de insônia.
O rádio ligado interage e traz a consciência e impotência do ser humano perante o planeta, a tsunami devastadora afogando o Japão, os árabes reunidos nas praças protestando por liberdade, derrubar a tirania, o populismo na América do sul , Europa e os EUA esbarrando em mais uma crise financeira, o acidente grave na marginal do Tiete, morte de outro motoqueiro, as maracutaias no congresso nacional... Os olhos estão pesados, o corpo incomodado por uma noite mal dormida. Gérson vai para o chuveiro e quem sabe na àgua quente descansar o corpo a alma.
As gotas de água caiam como balsamo na sua pele, uma mistura de alivio e paz o envolveram durante o banho. Gérson absorveu aqueles momentos intensamente, gostaria de poder guardar aquele fragmento de tempo num pequeno frasco, para abrir e usar nos momentos de angustia e tensão. Fragmento de ilusão que desapareceu assim que saiu para a rua e viver o seu cotidiano de trabalhador. A espera irritante do ônibus, coletivo lotado e trânsito moroso, repetida página de todos os dias. Atendente no pronto-socorro, já viu de tudo, calejado, para enfrentar mais um plantão de rotina áspera e muitas vezes dramática no cotidiano da periferia.
Mulheres pobres chegando na porta da unidade com as dores do parto e de repente inicia-se mais um parto,
jovens em crise de overdose, a maioria entrando em óbito, os baleados que chegam sem o que fazer, os acidentes domésticos, cortes,queimaduras, crises de hipertensão, diabetes descompensada,enfartados, quebraduras, crises de asma, os alcoólatras e também os hipocondríacos que diariamente passam em consulta, a maioria gente sem recursos nem opção.
Na verdade Gérson esta corroído por sua vida comum sempre tudo igual, sem perspectiva, dentro de um casulo que ele mesmo tece, os pais já há muito falecidos, eram fragmentos de lembranças. Busca a solidão, embora dormisse em certas noites com a luz da cozinha acessa, pois ouvia vozes, via coisas, mas nunca disse nada a ninguém pois temia ser internado, com o tempo até conversa com as vozes, esse é seu mais intimo segredo. Não gosta de ler livros, nem jornais, seu divertimento era ir aos circos mambembes que apareciam pelos bairros ir ao cinema assistir filmes trashs, lhe bastava o rádio para saber os fatos da cidade, do país, do planeta. Gérson pessoa insossa, alheia, vive a rotina, da casa para o trabalho e vice-versa, mulheres, apenas as de suas fantasias, às vezes procura garotas de programa. Sentia-se ignorado, fazia-se ignorado, não conversava além do necessário, pois assim não iria expor sua vida, não confia em ninguém.
Começou a economizar dinheiro para comprar passagem para a Chapada dos Guimarães sua única vontade, conhecer esse lugar distante no interior do país, viu fotos numa revista esquecida no banco do pronto-socorro há alguns anos e ficou com aquelas imagens fixas em sua mente. Não tinha nada que o prendesse, na verdade sempre fora um covarde, sem opinião de nada, uma pessoa mediocre , mesquinha, sempre preferiu ficar escondido na sombra, pela primeira vez estava determinado em mudar alguma coisa na sua vida, viajar e não voltar mais. Talvez encontrar-se, começar algo diferente, sentir o sabor da vida ?
Meses passaram e depois de mais um plantão cansativo Gérson tomou a decisão de mudar tudo. Logo ao amanhecer saiu pegou o ônibus para o terminal rodoviário, deixou todos os seus poucos pertences na casa que herdara dos pais, depois desse dia, ninguém sentiu sua ausência, foi dado como desaparecido, seu nome saiu no diário oficial, exonerado por abandono de serviço. O rádio, esqueceu ligado na tomada, o locutor relatava o alto índice de pessoas desaparecidas na cidade, apenas números e estatística para os arquivos oficiais.

31/07/2011


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