QUANDO ACORDOU NAQUELA MANHÃ
Noite
seca absorvendo o brilho lunar refletido no chão da cozinha, negror
de mil tentáculos abraçando a madrugada. Os olhos observam do
vitro, lua a boiar grávida no espaço, as palavras adormecidas
permanecem trancadas no deserto do inconsciente.
Sentimento
e desejo triturados desnudam toda a ilusão do amanhecer sem
amarguras e sal. A sensação do tempo corroído libera no meio do
negror noturno sensação de torpor e solidão, imagens do cotidiano
desfilando a frente dos olhos.
Arquitetura
das tragédias humanas roendo as entranhas de Deus, noite dentro da
noite, volume invisível pesando o sobre o corpo. A cidade, as
horas, eternidade até virar a folha do calendário, lua baça,
corpo suado, incansável alfabeto que mutante não cessa de nascer e
morrer dentro do corpo.
Negror
sem forma, sem limites, andar as cegas pela casa, a tatear a ilusão,
doce esfarelar da quimera bêbada que entorpece a realidade. Lá
fora a vida arrancada das entranhas da própria vida espera voraz.
Pneus velozes alertam que a realidade é desperta e aguarda faminta,
não importando a desordem e selvagens palavras a traduzir a
existência.
Jornada
cotidiana e veredas de concreto e sal, consumindo os livros que
nunca escreveremos, sobram lúdicas impressões, falsas afirmações
sobre o que nosso pensamento oferece : comunhão e dor pelas ruas,
avenidas, onde crescemos e aprendemos a geografia das palavras a
tecer o micro cosmos que construímos.
Próximo
dos trinta anos, estatura comum, esquálido, barba rala, unhas roídas
, olhos pequenos e fundos sempre mirando o chão. Avesso a ousadias,
meticuloso em sua couraça tímida, sabia ocultar a avareza,
covardia, orgulho, personalidade deletéria. Gérson adquiriu apego
obsessivo a objetos pessoais e domésticos, nada podia mudar de lugar
em sua casa desde a morte de sua mãe. A mesa de mogno, as cadeiras
estofadas, porta-retratos, quadros, móveis, cortinas de renda
portuguesa, toalhinhas de crochê e sua coleção de canetas, tudo
intocável desse modo sentia-se seguro, confortável. Envolvera-se
com uma garçonete mulher madura com ela desenvolveu sua
sensualidade, pode sentir prazeres obscenos que antes permeavam seu
imaginário, conviveram por meses mas o relacionamento neurótico
promovia acirradas discussões, brigas, o que determinou o findar do
convívio. Nunca mais envolveu-se com outra mulher, Gérson,
resoluto dizia para si : sei que devo ser teimoso em ir, o calendário
sempre será descartável, o vento no rosto é o que importa, devo
ir,... não tenho outra escolha e vou.... Noite a dentro diluído na
realidade ele ansiava seguir sua escolha, diante da realidade crua,
vivendo desgastada, amarrotada rotina. Submerso no negror noturno
sente-se cego, cego por um amor que nunca sentiu verdadeiramente,
sobe pela garganta angustia pulsante...os sons da cidade, todo o
sal e ferrugem consumindo suas células, relutância pela vida, sem a
noção das horas, pela primeira vez decidiu tomar uma atitude:
Partir e não olhar para trás! .... Alvorada alaranjada a consumir
o escuro da boca !
Gérson
corroído pela solidão, percorre o oceano dos pensamentos, as
arestas da paisagem urbana procurando o brilho sincero dos olhares
anônimos passando ao seu lado, implacável verdade de estarmos sós
quando andamos na multidão. Assim as horas foram devoradas em seu
pensamento, travessia ácida na madrugada de insônia.
O
rádio ligado interage e traz a consciência e impotência do ser
humano perante o planeta, a tsunami devastadora afogando o Japão,
os árabes reunidos nas praças protestando por liberdade, derrubar a
tirania, o populismo na América do sul , Europa e os EUA esbarrando
em mais uma crise financeira, o acidente grave na marginal do Tiete,
morte de outro motoqueiro, as maracutaias no congresso nacional... Os
olhos estão pesados, o corpo incomodado por uma noite mal dormida.
Gérson vai para o chuveiro e quem sabe na àgua quente descansar o
corpo a alma.
As
gotas de água caiam como balsamo na sua pele, uma mistura de alivio
e paz o envolveram durante o banho. Gérson absorveu aqueles momentos
intensamente, gostaria de poder guardar aquele fragmento de tempo num
pequeno frasco, para abrir e usar nos momentos de angustia e tensão.
Fragmento de ilusão que desapareceu assim que saiu para a rua e
viver o seu cotidiano de trabalhador. A espera irritante do ônibus,
coletivo lotado e trânsito moroso, repetida página de todos os
dias. Atendente no pronto-socorro, já viu de tudo, calejado, para
enfrentar mais um plantão de rotina áspera e muitas vezes
dramática no cotidiano da periferia.
Mulheres
pobres chegando na porta da unidade com as dores do parto e de
repente inicia-se mais um parto,
jovens
em crise de overdose, a maioria entrando em óbito, os baleados que
chegam sem o que fazer, os acidentes domésticos, cortes,queimaduras,
crises de hipertensão, diabetes descompensada,enfartados,
quebraduras, crises de asma, os alcoólatras e também os
hipocondríacos que diariamente passam em consulta, a maioria gente
sem recursos nem opção.
Na
verdade Gérson esta corroído por sua vida comum sempre tudo igual,
sem perspectiva, dentro de um casulo que ele mesmo tece, os pais já
há muito falecidos, eram fragmentos de lembranças. Busca a
solidão, embora dormisse em certas noites com a luz da cozinha
acessa, pois ouvia vozes, via coisas, mas nunca disse nada a ninguém
pois temia ser internado, com o tempo até conversa com as vozes,
esse é seu mais intimo segredo. Não gosta de ler livros, nem
jornais, seu divertimento era ir aos circos mambembes que apareciam
pelos bairros ir ao cinema assistir filmes trashs, lhe bastava o
rádio para saber os fatos da cidade, do país, do planeta. Gérson
pessoa insossa, alheia, vive a rotina, da casa para o trabalho e
vice-versa, mulheres, apenas as de suas fantasias, às vezes
procura garotas de programa. Sentia-se ignorado, fazia-se ignorado,
não conversava além do necessário, pois assim não iria expor sua
vida, não confia em ninguém.
Começou
a economizar dinheiro para comprar passagem para a Chapada dos
Guimarães sua única vontade, conhecer esse lugar distante no
interior do país, viu fotos numa revista esquecida no banco do
pronto-socorro há alguns anos e ficou com aquelas imagens fixas
em sua mente. Não tinha nada que o prendesse, na verdade sempre
fora um covarde, sem opinião de nada, uma pessoa mediocre ,
mesquinha, sempre preferiu ficar escondido na sombra, pela primeira
vez estava determinado em mudar alguma coisa na sua vida, viajar e
não voltar mais. Talvez encontrar-se, começar algo diferente,
sentir o sabor da vida ?
Meses
passaram e depois de mais um plantão cansativo Gérson tomou a
decisão de mudar tudo. Logo ao amanhecer saiu pegou o ônibus para
o terminal rodoviário, deixou todos os seus poucos pertences na casa
que herdara dos pais, depois desse dia, ninguém sentiu sua ausência,
foi dado como desaparecido, seu nome saiu no diário oficial,
exonerado por abandono de serviço. O rádio, esqueceu ligado na
tomada, o locutor relatava o alto índice de pessoas desaparecidas na
cidade, apenas números e estatística para os arquivos oficiais.
31/07/2011
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