INDIGENTE BRASIL
Próximo
do meio-dia Seu Zé das canecas passava na rua com seu carreto,
com fitas de plástico coloridas pregadas com taxinhas, bandeirinhas
do Brasil, adesivos e ditos populares escritos nas tábuas do
carreto, com pequenos espelhos colados, chamavam a atenção de
qualquer um. Com o carreto colorido, cheio de quinquilharias, lá
vinha Seu Zé, cantando e avisando a vizinhança que estava
recolhendo panelas velhas, qualquer coisa que a freguesa não
quisesse mais, uma roupa velha também servia, um prato de comida
para quem se apiedasse do velho. Quando não estava com umas e
outras na cabeça vinha bem humorado e cantante, e agradecia aquele
que deixava para o amigo qualquer coisinha. Uma vez ganhou muitas
canecas de alumínio, então pregou várias no carreto e assim com o
barulho, parecia uma matraca ambulante avisando o povo que Seu Zé
estava passando a recolher trastes e velharias, e assim virou o Seu
Zé das canecas.
Um
chapéu de palha na cabeça, cigarro de fumo picado no canto da
boca, camisa entreaberta, bermuda, chinela de dedo e um sorriso nos
lábios, cantando canções, reisados, aprendidas na infância na
roça, “nos interior” das Gerais, como dizia quando lhe era
permitido um minutinho de prosa.
Seu
Zé das canecas, morava na Primavera, favela na beira do córrego,
mancava do pé direito, quando jovem caiu do andaime, do quarto
andar, quase morreu, quebrou tudo que foi osso, o pé nunca ficou
bom. Na época pegou uma boa indenização, conseguiu até comprar
uma casinha, juntou-se com uma baiana que só sabia gastar dinheiro,
cansava de trabalhar e a mulher só gastava, um dia foi embora para o
norte com outro, nunca mais soube da ordinária ! caiu na bebedeira,
sua vida só andou para trás, mas teve força para sair do buraco.
Nunca
roubou nada de ninguém, passou muita fome, teve oportunidade de
cair no crime, mas teve juízo para nunca prejudicar nem um pardal.
Foi levando a vida aos trancos e barrancos, depois dos quarenta anos
não conseguia emprego fichado, então fazia bicos. Agora vivia
assim na favela, sozinho, quando podia tomava uns tragos no bar, não
devia vintém para fulano nenhum, conseguiu com muito custo
aposentar. As vezes o pé manco começava a doer e então ia no
pronto-socorro tomar uma injeção, logo melhorava.
Lá
no barraco, de chão cimentado com cacos de azulejo, ele tinha
algumas preciosidades, seu altarzinho de reza, um poster bonito que
ganhou, paisagem do estrangeiro, uns livros que uma professora lhe
dera, mas era de pouca leitura, sabia bem, desenhar seu nome,
documento tinha a carteira profissional bem surrada jogada numa
gaveta do guarda-comida, um rádio a pilha, um fogão jacaré, um
colchão, um lampião, cobertor e claro velhas panelas.
Tudo
o que recolhia durante o dia, vendia no depósito de reciclagem, e
assim garantia uma quentinha para a noite, as vezes, uma cervejinha.
Seu
Zé das canecas imaginava um dia poder voltar para seu torrão natal,
mas era só um desejo distante, sonhava com as imagens da infância
pobre mas alegre, com seus irmãos e sua mãe. Corria pelas campinas,
descalço, atrás de passarinho, as frutas do mato, e Tupi o
vira-latas. Um dia o dono das terras expulsou todo mundo das roças,
teve morte matada, sangue, muitos tiros e revolta. Venderam aquela
imensidão de terra para um grande usineiro. O novo dono não queria
nada de roça, mandou tirar todo mundo. Mataram sua mãe pois, ela
protestou e não queria sair do roçado, a jagunçada não perdoou, o
menino José foi morar com a madrinha longe da sua vila, separaram os
irmãos, a dureza da vida continuou, tinha que pegar logo cedinho no
cabo da enxada, quando completou dezoito anos caiu no mundo, sozinho
enfrentou a vida, nunca mais viu seus irmãos.
As
vezes ficava olhando para as estrelas a noite e pensava na vida. O
significado de tanta luta, o esforço pela sobrevivência, tanta
dificuldade, quanta riqueza e miséria, por que um Brasil tão imenso
e gente amontoada nas favelas, passando necessidade ? Perdendo-se no
vício, para o trafego das drogas ? não sabia a explicação,
contentava-se em olhar as estrelas no breu noturno, e tomar um longo
trago de cachaça. As vezes lembrava do rosto do maldito que atirou
em sua mãe, se pudesse voltar no tempo mataria o desgraçado com as
próprias mãos !
De
repente no meio da madrugada ouvia-se tiros, confusão de vozes, a
paz terminara na Primavera, pois pagava-se ágio, para entrar na
favela, era ordem do dono da boca, Nezão Caolho, quem não
comparecia com a tarifa sofria as consequências, os moradores mais
velhos como ele pagavam tarifa mínima, os meninos pequenos eram
usados como aviãozinho para as encomendas pequenas, Seu Zé deixava
a tarifa separada para o Nezão, que tirou a paz daqueles que já não
tinham quase nada na vida. Nezão, negro, jovem líder do trafego
conquistou o poder debaixo de bala, perdeu um olho num embate entre
traficantes e ganhou o apelido de “Caolho”. Quando o camburão
da polícia entrava na favela era para buscar algum presunto, ou
pegar a parte deles no acordo e bico calado compadre ! Os nóias
ficavam perambulando nas proximidades da favela mendigando pedra de
crack, vira e mexe aparecia uns carros de gente bacana atrás das
drogas, as vezes encontrava-se um morto no meio do matagal, dívida
não paga com o Nezão, tudo rapaziada nova, dava pena !
Na
época de eleição tirava-se a barriga da miséria, os candidatos
que quisessem os votos da favela, que triplicou de tamanho com o
passar dos anos, tinham que entrar com cestas básicas, remédio,
roupas doadas para as crianças. Muita demagogia, promessas dominavam
o ambiente da favela todos ficavam satisfeitos com tanta festa,
presentes recebidos dos candidatos, muito churrasquinho, cervejada,
foguetório, tudo sob controle do dono da boca, que lavava o
dinheiro da droga na campanha eleitoral, era tanto aperto de mão e
tapinha nas costas, foi assim que Seu Zé conseguiu dentadura
novinha, um candidato dentista de muita consideração lhe fez a
prótese gratuitamente. Seu Zé fez campanha, distribuindo santinho,
sorte que tudo ficou pronto antes do dia da eleição, pois o
dentista não conseguiu eleger-se deputado.
Também
por que ele não começou como vereador, gente que tem o olho maior
que a cara! Seu Zé das canecas andava o bairro todo com seu carreto,
deixava a quentinha encomendada, e voltava para a favela depois de
mais um dia cansativo, não gostava de ir para longas distancias, nem
ir próximo a marginal pois, tinha medo de ser atropelado, morrer e
ser enterrado como indigente.
Numa
tarde muito quente, voltando para a favela Seu Zé viu de longe
rolos de fumaça no céu, ficou angustiado, o coração acelerado,
andou mais rápido, o fogo saia da favela. Abandonou o carreto na
rua, entrou na favela, as vielas estavam agitadas, gente gritando,
chorando viu seu barraco em chamas, então começou a ajudar os
outros, retirar as crianças, socorrer as pessoas. Ouviu um choro de
criança trancada num barraco pedindo ajuda. Precisou arrombar a
porta, as chamas estavam altas, o telhado veio abaixo, um caibro
pesado cai em sua cabeça, perde a consciência, as chamas devoram
tudo rapidamente.
Os
bombeiros, desdobram-se para controlar as chamas, depois de algumas
horas encontram dois corpos carbonizados, um homem e uma criança. O
velho mulato alegre, que puxava o carreto colorido não passou mais
pelas ruas, sem identificação seu corpo foi enterrado no cemitério
municipal na ala dos indigentes...
05/05/2011
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