BRINCO
DE PÉROLA
Como estivesse saciando sua fome, observava gravuras, fotografias,
lia reportagens sobre arte, não perdia a oportunidade de estar em
grandes exposições e perder-se diante da profusão das cores,
formas e mergulhar nas diferentes propostas das telas ou esculturas.
As cores pareciam sair das pontas dos seus dedos então era plena
satisfação ver na tela o movimento mágico da cópula das cores.
Diante
da amplitude e perspectiva que as formas e o conjunto de cores,
projetavam-se expostas, sentia forte inquietação dominando sua
lucidez, só desejava viver as cores, as pessoas próximas no começo
brincavam com Pablo, dizendo que ele era o verdadeiro Picasso. Seu
pai amante das artes tinha tanta admiração pelo pintor espanhol que
batizou o recém-nascido de Pablo. Desde menino começou a paixão
pela arte, começou a desenhar grandes borrões coloridos, depois
foi adestrando seu talento sempre buscando a vibração pela vida,
sem contornos, muita energia ! A arte com o tempo tornou-se
obsessão.
Colecionava
revistas de arte, lia tudo o que podia, quando começou a trabalhar
como office-boy, adorava sair para a rua e aproveitar para observar,
entrar em exposições grátis, museus, muitas vezes chegava tarde
ao escritório e sempre era advertido até o dia em que o senhor
Diógenes um advogado rançoso, o demitiu.
Adorava as mulheres de Mondigliani, sempre projetou nas mulheres que
amou as figuras delgadas do pintor. Sempre vivia uma nova fase como
se fosse um artista buscando traduzir uma nova proposta estética.
Adorava a irreverência e criatividade dos modernistas, a arte
abstrata, a geometria de Lígia Clark, a biografia de Frida Kahlo,
o comovia, por que ela tinha sido deficiente físico como ele.
Como
estivesse saciando sua fome, despia com o olhar as mulheres nos
ônibus, metrô, pelas calçadas, algumas percebiam e gostavam,
outras indignavam-se, as colocava em telas imaginarias, plenas e
nuas, era uma realização incompleta. Não passava de um razoável
pintor, era auto-didata. Sua deficiência nunca o impediu de nada, o
garoto talentoso, transforma-se num jovem crítico, ácido por vezes,
buscava seu espaço, mas muitos empecilhos, principalmente, a
precoce morte dos pais, o financeiro, foram distanciando-o do “mundo
da arte” precisou trabalhar cedo e sobreviver. Trabalhava na
compensação de cheques, adorava encontrar os colegas para as
festas na quadra dos bancários, na rua Tabatinguera, e lá
conheceu Heloísa, uma garota irreverente, gostava de arte e de
Trotsky, sua alegria pela vida contagiava, diferente dos outros
pedantes trotskistas, ele começou a encontra-la, ela parecia com a
modelo do quadro: “a garota com brinco de pérola” de Vermeer,
isso o deixava excitado, confidenciou a Heloísa, o que sentia, ela
satisfeita com a analogia, deixou-se levar na fantasia de Pablo, que
a presenteou com um par de brincos de pérolas. Era difícil,
ficar sem pensar em Heloísa, ele começou a frequentar seu
apartamento, tornaram-se furiosos amantes.
Pablo
parecia um sonhador, outras um cético, descia os sete círculos do
inferno ou subia os círculos do paraíso, então desenhava
freneticamente, tinha pastas e pastas com desenhos a carvão, e
pastel. Depois de algumas doses de vodca, auto-denominava-se “anjo
barroco despudorado” e então ria de si mesmo. Fazia analogia com
o barroco e a atualidade. Perpétua dualidade, conflitos, nada muda
na essência humana continuamos a ser anjos e demônios, buscando
insana liberdade. O país e´um suculento fruto para as potencias
capitalistas. Resta então encher a cara nas sextas-feiras !
Heloísa
gostava de Camparí com gelo, era gracioso ver seu sorriso largo,
sua voz rouca, arrepiavam os pelos ! Olhar malicioso, provocante,
ficavam horas conversando, divergindo, ria alto, parecia que ia
salvar o proletariado naquele instante, Pablo só
ironizando
os salvadores da “causa operária”, entretanto, a luta de
classes, a construção da quarta internacional, ficavam bem
resolvidos, entrelaçados e saciados de prazer debaixo dos lençóis.
Pablo
apaixonado por Heloísa, produziu melhor sua arte, conseguiu expor
seus quadros até conseguiu ganhar uma grana. Começou a vender uns
quadros, fazia presentes para os amigos, sentia pleno prazer com
alguns e angustia com outros.
Heloísa
era livre, nunca aceitou ser cooptada por qualquer facção, livre
também em relação a Pablo, queria viver plenamente sem ter apegos,
sem posses.
Viveram
juntos, regados de vodca, cerveja, sedução, paixão pela vida,
fizeram greves juntos, levaram porrada da polícia, militantes ativos
no sindicato, viveram felizes até que um terceiro personagem surgiu
entre os dois.
Como
estivesse saciando sua fome Pablo entregava-se as cores, magma de
emoções explodindo no papel, nas telas, a rotina do trabalho ficava
perdida, em algum compartimento de sua angústia, a linguagem da sua
criatividade o mantinha lúcido, quase virava um “maluco beleza”
depois retornava a luz da realidade. Então sorria tresloucado,
conversava com vozes que surgiam em sua mente, uma mistura furiosa
surgia na superfície da tela, sentimentos estranhos de posse, ódio,
multiplicavam figuras medonhas, que cada vez mais o vampirizavam e o
torturavam , a plena satisfação de criar, torna-se furiosa
angustia, mas sempre foi capaz de encarar o abismo e não cair. Essa
fase piorou, começou a faltar no emprego, ficava sem comer, não
atendia telefones, ficava horas petrificado olhando da janela a
cidade lá fora, Heloísa buscou intervir, queria leva-lo ao médico,
a algum lugar, mas ele ficava agressivo, dizia que estava enfrentando
o encantamento das serpentes !
Heloísa
não esperou, providenciou sua internação, foi levado à força,
ficou uma temporada em uma clínica, não pintou mais, passava os
dias entorpecido de medicamentos, e com o tempo as vozes sumiram,
sumiram os amigos, parentes não tinha, Heloísa também acabou
sumindo, ficava vagando no pátio da clinica, estava no fundo do
abismo que tanto resistira, não sentia mais fome, só o vazio, o
nada...
Semanas
passaram, meses passaram, dois anos. Heloísa cortou o cabelo, tingiu
de vermelho, mudou a maquiagem, trocou os quadros do apartamento,
tornou-se dançarina de strip de uma boate sofisticada, nada mais
lembrava Pablo. Ela agora saia com um cara casado, muito mais velho,
frequentador da boate, gostou de assumir o papel da outra,
divertia-se com o novo relacionamento.
Numa
tarde de verão, apertam a campainha do apartamento, Heloísa estava
com seu amante, nus, trocando carícias, não pararam, era Pablo do
outro lado. Tinha saído da clínica, foi procurar por Heloísa.
Cansou de tocar a campainha então, desceu as escadas, foi para o rol de entrada do prédio e ficar esperando, talvez ela não
estivesse no momento. Estava muito magro, barba por fazer, roupas
doadas pela clínica, uns trocados no bolso e o rg.
Heloísa
não costumava descer para despedidas na portaria do prédio,
resolveu descer de braço dado com seu amante, Pablo estava na
calçada e ficou muito chocado com Heloísa de braços dados com um
outro homem. Irado ele gritou, falou palavrões, Heloísa surpresa,
disse que não podia parar no tempo, afinal não eram casados !
Humberto, seu amante já foi empurrando, intimidando Pablo.
De
repente um minuto de lucidez pairou entre os três, Pablo aquietou
seu ciúmes, a raiva,e pediu a Heloísa explicações. Ela foi
direta, não sentia mais nada por ele, fez o que pôde fazer e fim,
cada qual que segui-se sua vida. Humberto, ou dr. Humberto,
retira-se de fininho, não podia aparecer em escândalo passional.
Pasmo,
sem saber o que pensar, Pablo pediu que ela devolvesse os seus
pertences e as chaves do seu apartamento que iria embora. E assim
aconteceu, subiram, ela começou a reunir algumas peças de roupas,
quadros, alguns livros, pegou as chaves, quando viu Pablo sair da
cozinha com a faca de cortar carne e desferiu-lhe vários golpes
sobre seu corpo. Transtornado Pablo era ódio puro, depois do ato
ensandecido, todo manchado de sangue, ainda beijou Heloísa
desfalecida, foi no quarto, achou o bauzinho de joias, encontrou os
brincos de pérola, chorou, desvairado saiu correndo porta a fora, só
quer correr, fugir, atravessa a avenida na contramão e e´atingido
violentamente por um caminhão, seu corpo é arremessado num muro
desfalecendo imediatamente.
Jornais,
televisão, revistas, noticiaram por vários dias, o crime, a paixão
de um artista alienado e a dançarina de boate, seus quadros, os
poucos encontrados ganharam notoriedade finalmente....
10/02/2011
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